quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O Nojo da Vida (Pedro Drumond)





O Nojo da Vida (Pedro Drumond)

De tanto receber espinhos
Aprendemos a como lançar espadas.
O tempo constantemente passa
E aquele que se mantém bélico, íntegro,
É pisoteado pela tropa de seres indignos
Que num ciclo vicioso cruzam o seu caminho.

A mágoa é um tipo mais refinado de tristeza.
Como toda dor, é passageira. Logo,
O que embrutece a alma são as cicatrizes!
Elas sim - as cicatrizes - fazem dos homens
Tão ilhados quanto um arquipélago de infelizes.

Não sei de quem mais tenho nojo,
Se de mim ou daqueles com quem convivo.
Se são reflexos do que ecoo,
Ou se sou alvo dos seus desgostos.
Não podemos estar separados
Nem tampouco unidos.

A loucura de um prisioneiro aflito
Se dá quando as suas algemas
São as suas primeiras referências
Antes mesmo de ter tido contato
Com a menor sombra da liberdade.

Minha sede não é de vaidade,
Não é de bajulação, não é de eufemismos.
Pelos deuses, minha sede é de dignidade,
De valor, de consideração, de compromisso!

Ser o pilar dos mesmos que te arruínam com todo prazer.
Ser os restos que por obrigação hão de restaurar.
Ser aquele que não consegue contradizer
Os venenos, os sarcasmos, as humilhações pungidas,
Não por estar rebaixado ou condizente,
Mas por estar além de tais elegias,
Apesar de não ter conseguido
Sair do mesmo lugar de sempre.

E o medo do destino?!
Quando o exilado do campo de concentração
For separado dos seus anjos e algozes
Para ser direcionado à câmara oculta
Que dá passagem à fronteira entre a vida e a morte,
Estará em seguida imerso numa realidade melhor
Ou num castigo que mais lhe inferniza,
De modo que a guerra lhe torne saudosa
Como um paraíso eternamente perdido?

Escapo a cada dia, a cada hora do grande tormento.
Vivo em prol da hesitação, da inatividade e dos contornos.
Em compensação o que recolho durante esse tempo
São pequenos fragmentos de cacos e sonhos
Que se alternam no meu ser de um modo perigoso
Até não me repelirem e nem permitirem
Com que eu venha a repelir os outros.

(Ai de mim se parecer que assim prossigo porque quero!).

Uma ideia do que seja
E d'onde venha a pureza da vida
Finalmente se revela quando menos espero:
Diretamente do mundo das verdades,
A pureza é o nojo da vida.
Neste momento o pouco que posso significar
Seja um temporário símbolo da sua falta de esmero.

domingo, 28 de setembro de 2014

O Homem & A Barata (Pedro Drumond)




O HOMEM & A BARATA (Pedro Drumond)

- Então é pra isso que eu estou aqui? - pensou - Para ser esse limite, para ser essa confusão, para ser essa loucura, para ser essa esquizofrenia? Eu nasci para ser essa angústia, para ser essa doença, para ser esse desperdício, para ser essa paralisia? Concebeu-me a existência para eu ser esse desespero, para ser esse erro, para ser essa covardia, para ser essa ilusão, para ser essa completa aberração? Estou aqui para ser esse castigo, para ser esse inferno, para ser esse abandono, é só para isso que sirvo?

Parou de dar voz as suas letargias. Estava na sala-de-estar na mais completa escuridão.  Os outros da casa já dormiam. Observou a rua deserta. Enamorou a frieza da madrugada. A indiferença da vida era sua amante. Respirou triste e profundamente. Em seguida olhou para o vago. Como se soubesse que num breve futuro iria rever aquela cena que estava vivendo, aproveitou essa sagaz intuição para dirigir um recado pessoal para si mesmo. "Face to face". Um recado direto de alguém que já estava consciente das rígidas especulações que seriam feitas no futuro ou na revisão da existência pós-morte:

- Está vendo isso aqui? Está vendo como pode ser ridículo esse sofrimento? Está se sentindo abalado por causa dessa inferioridade que tanto alimentou? Está vendo o tempo perdido? Pois não tenha vergonha disso aqui não, meu caro... Eu sou você! Eu sou real! Dai onde você está pode ser fácil, cômodo tirar isso de letra, mas daqui as coisas são bem mais diferentes, completamente opostas! Uma batalha nunca é tão truculenta se vista do alto da colina. Sua tragédia enxerga-se no campo em que se desenvolve. Isso daqui é vida, meu filho, vida! Não renegue jamais a  sua raiz, que sou eu. Eu sou você, querendo ou não, bem ou mau, você sou e fui eu! Seja agora diferente ou não de mim, pouco importa. Se os anjos ou os demônios estão aí do seu lado, apontando para mim daqui, e você está tendo noção da grande ilusão que represento, então que jamais se dê a presunção de desmerecer o que hoje é o meu presente, a minha realidade, e o que para você finalmente é passado, resguardo. Não nos subjugue! Podemos ter tido todos os defeitos do mundo, termos cometido todas as faltas imperdoáveis, termos perdido tudo e todos por culpa própria, termos sido irresponsáveis, levianos, covardes, mas a nossa maior virtude ainda sim é o amor-próprio, é o abraço em nós mesmos, é a propriedade individual que é nossa obrigação manter. É o apoio tanto ao herói quanto ao vilão que somos. Nossa maior virtude é jamais nos virar as próprias costas. Jamais nos envergonhar do que haja de nosso pior, já que é contraproducente se vangloriar do que haja de nosso melhor - não é o que dizem?

E assim saiu da sua caixa preta, dirigiu-se à cozinha, tomou um copo d'água, depois encheu mais uma milésima xícara de café e foi para o seu quarto. Sentou-se na cama e absorto continuou olhando para o grande nada. A televisão estava muda, só alternava cores e imagens. De repente ouviu um instalo, um arranhão, um barulho muito leve, embora naturalmente perceptível para um quarto silencioso. Olhou para os lados até que percebeu próximo ao seu travesseiro uma vasilha de plástico, daquelas que comportam sanduíches e salgados, que ele tinha improvisado como cinzeiro e deixou ali. Dentro dela havia uma minúscula baratinha. Uma baratinha daquelas que não metem medo nem causam grandes ojerizas, mesmo às pessoas mais sensíveis. Uma simples barata, ora essa, qual o problema?! E essa barata, dentro do cinzeiro improvisado de plástico, fazia um pertinente barulho, apesar do seu minúsculo formato, pois lutava desesperadamente para sair de lá, sem conseguir. E assim ele ficou observando a sua batalha.

Observou a batalha da barata para escapar daquela prisão sem pensar em nada, sem esboçar qualquer reação. Parecia uma criança a contemplar estrelas sem nenhum encantamento. E observou a barata. Ela tentava escalar a caixinha de plástico até que acabava escorregando, voltando à superfície. Depois tentava insistentemente uma, duas, três, incontáveis vezes. Estava agitada, eufórica, tentava escalar aquilo ali com ímpeto e desespero. Todas as suas tentativas foram fracassadas. Ela ia pr'um lado, depois para outro, e nada, nada, a barata estava definitivamente presa! Ela deve ter se lembrado dos besouros virados de cabeça para baixo. O quanto já deve ter zombado deles outrora. Pois agora era ela quem estava ali naquela situação vexatória.

E o nosso rapaz ali, olhando, observando, absolutamente focado, concentrado, entretido naquela cena. Nesse momento ele se igualou à vida. Ele sentiu-se a própria existência universal a assistir imparcialmente o espetáculo do desespero humano no alto de um trono. Ele tinha o mesmo espírito, o mesmo sentido da vida, que há poucos minutos antes lhe observava a desabafar todas as suas aflições da janela. Mas ele também reconheceu-se na barata. Ele e aquela barata, apesar da espécie e posições diferentes, estavam inseridas em complexos perfeitamente idênticos - as lutas inacabadas para escaparem das próprias prisões em que se meteram.

Ele observou a barata. Viu-se refletido nela. Ele era a barata a murmurar na escuridão da sala-de-estar agora pouco. O pranto e desencanto de ambos eram os mesmos. Não havia diferença entre o homem e a barata. Seja na repugnância, na fragilidade, na erupção dos sentimentos, nessa hora homem e inseto são os mesmos. Valha-me Deus, que ironia!

Logo, dirigiu-se com muita normalidade à pequena barata:

- É, minha querida, não existe mesmo qualquer diferença entre nós nesse momento. Sei de tudo o que deve estar passando pela sua cabeça. Ah, me esqueci, dizem que você é irracional. Embora o que me seja realmente irracional é o modo como a vida nos trata, concorda? Tenho que dar o braço a torcer, nós estamos na mesma. Só que haverá algo que nos distinguirá nesse caso. Eu vou fazer com você o que eu gostaria que a vida fizesse comigo. Eu te libertarei da sua prisão, assim como eu gostaria de ser libertado da minha. Não serei neutro ou impessoal como a vida. É justamente pela nossa pequenez que aspiramos a grande liberdade. Por isso presumo que você esteja em condições de possui-la muito mais do que eu. Pelo menos parece merecer. Eu estou aqui por você, mas quem está aqui por mim? Não posso contar nem comigo mesmo! Mas você não terá o mesmo fim, pelo menos isso me conforta. Eu lhe tirarei desse cinzeiro torturante e você seguirá o seu caminho. Não se preocupe, não vou pisoteá-la em seguida - seria hipócrita da parte de quem já tanto foi pisoteado por outras forças alheias.

Enquanto ele conversava com aquele inseto, para muitos considerado asqueroso, a barata instantaneamente sossegou-se. Parecia estar realmente prestando atenção ao que ele dizia. Talvez estivesse, por que não? E ele virou o cinzeiro de lado até que ela se foi, com suas patinhas nojentas, na velocidade de um jato, rumo a sua liberdade pura. A mesma liberdade pura que não seria desfrutada tão cedo por aquele ser corrompido, desorientado, estático e perdido. A barata certamente tinha a alma mais límpida do que o estado conservado pela alma daquele homem, um reles solitário.

- Pedro Drumond

sábado, 13 de setembro de 2014

Aversão (Pedro Drumond)





Aversão (Pedro Drumond)

A ingratidão, a injúria e a insatisfação
Só podem ser a maior riqueza dos miseráveis.
Quando um diamante, por mais valioso que se aparente,
Sente-se mais limpo pelas lamas que lhe revestem,
Do que pela nobreza das águas-correntes que lhe banham,
Cobras sorrateiras quase explodem ao prazer da sua peçonha.
Enquanto isso o antídoto do amor, vindo em missão de cura,
Termina por si só secretamente doente, renegado na injustiça.

Podemos dizer que algo realmente atinge o nosso núcleo
Quando trágicas erupções ou divinas orquestras
Ocorrem em nosso íntimo, enquanto que por fora
Nada se torna perceptível, nada se exterioriza.

A tristeza se concretiza
E até mesmo a felicidade se materializa,
Quando não é possível esboçar qualquer reação.
Não se é possível transviar os efeitos
Quando o absurdo faz-se símbolo do nosso coração.

O silêncio, o impacto,
A pura constatação do que se sente
Ao que o mundo acabou de nos oferecer
É o sinai mais fatídico de que fomos atingidos
Irrevogavelmente por algo ou por alguém.
(A próxima flecha, d'onde virá?)

A aversão é a consequência mais perigosa
Que se pode colher depois de tanta desfeita praticada.
A profundidade do amor, da gratidão e da solidariedade,
Quando absolutamente desprezados, convergem-se
Das ternuras mais angelicais às mais demoníacas das mágoas!

Anos perdidos, anos esvaídos pelo ralo.
Enfrentei sombras e aberrações
E toda sorte de seres falsos
Por nada, por ninguém.
Para terminar humilhado, desmerecido,
Ofendido e desprezado
Por alguém cujo sangue é sujo de veneno e rancor.

Alguém que não só reclama de barriga cheia,
Mas prefere a seda da ilusão aos espinhos do amor.
Alguém de quem se cuida a vida
Para em seguida nos apunhalar até a morte!
Dos inimigos qualquer afronta é digna,
Porém nunca dos que ao nosso lado deveriam estar,
Porém jamais, jamais daqueles de quem sempre,
Sempre com a melhor das dedicações que se tinha,
Apesar dos contra-tempos, ousamos querer
Em algum instante abandonar.

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

O Sonho do Amor Recíproco (Pedro Drumond)






O Sonho do Amor Recíproco
(Pedro Drumond)

Certa canção faz com que eu enamore
Um rosto que nunca vi.
Com que eu ofusque-me à luz de um sorriso
Que outrora jamais amanheceu.
Com que eu aconchegue-me sobre um largo peito
Que traz em si a brisa do mar nos seus pelos,
De modo que eu me prenda nos fortes braços de um ser amado
Que recheado de zelo, embriagado de afeto, permite-me sentir
As batidas do seu coração, o silêncio da sua alma,
A melodia da sua respiração...
Permite-me esquecer , enfim, de todo o resto!

Por céus, quem é esse alguém, quem é esse fantasma?!
De onde vem esse outro devaneio que me é anônimo?
Não faço a mínima ideia, nem quero fazê-lo.
Já se faz bem satisfatória a minha doce ilusão.
Não seria possível viver. A morte de nada seria,
Caso não fossem as nossas almas alimentadas
Pelo sabor corrompido dos nossos sonhos,
Pela nuance incontrolável das nossas euforias.

E se um dia esse alguém chegar, quem ainda serei?
E se um dia quiser me amar, acaso merecerei?
Se nunca passar por mim, de que adiantará?
O sonho do amor recíproco há de cessar
Talvez num tempo que chegue por aqui
 Mais atrasado do que o próprio fim!

A Escassa Confiança (Pedro Drumond)




A Escassa Confiança
(Pedro Drumond)
Assim como quem tem uma espada apontada para suas costas,
Assim como quem tem os ventos empurrando seu salto do precipício,
Meu viver de tal forma vigora. Meus segundos se esgotam
Na medida em que a minha eternidade é assassinada pelo desperdício.

Que a pressão deliberada dos ditos "bem-intencionados",
Despejadores da peçonha sem vindicta,
Jamais se estenda à loucura dos desesperados,
Pois o acalanto da chegada de uma esperança
Logo torna-se morno quando sonha-se demasiado
Em função da escassa confiança transmitida pelo pacto da vida.
Seja lá por sua altiva sedução, seja lá por suas perigosas elegias.

O festim passou pela minha rua.
A alegria da massa ainda ressoa aos meus ouvidos.
Meu coração por isso não dói, já repousa desiludido.
Cabe a mim durante sua baixa guarda
Fugir à tortura de preservar
O restante dos meus poucos pedaços
Que ainda soltam seus fracos gemidos.

Meu ser pelos reflexos do espelho
Parecerá mais livre, intacto e vivo.
Meu ser pelos males do desejo
Definirá-se menos completo,
Nada abençoado, pouco satisfeito.
Quisera eu quiçá ser digno pelos vários infinitos
Que transcorrem os meus defeitos.

Mas não, ai de mim! Tenho, querendo ou não,
De engolir os sapos, os bois, os desquites,
Quando a efervescência alheia
No seu mais alto auge, me discute.

Não posso seguir inteiro, portanto sou condenado.
Ao apelo derradeiro são inúteis,
Dispensáveis e incompetentes,
Quaisquer que sejam as minhas raras virtudes.
Assim como são os meus espetáculos baratos
No teatro sem plateias da minha inquieta mente.

sábado, 6 de setembro de 2014

Uma Trágica Cicatriz (Pedro Drumond)






Uma Trágica Cicatriz
(Pedro Drumond)

Existe grito maior que um socorro em silêncio?
Só eu sei o que é acordar e deitar-se comigo.
Só eu posso desconhecer o peso e a leveza
De tudo mais que me acarreta.

E ainda que saibamos ter conquistado
Afetos inquebrantáveis, amizades divinas,
Amores perdidos, sonhos queridos,
Sempre nos sentiremos e seremos anônimos,
Quando imersos na batalha pessoal da existência
Que arma cuidadosamente o seu campo de extermínio
Para depois dizer-se livre de afrontas,
Enquanto observa o desalinho de seus peões
Nesta hora, seus desconhecidos...

Ser humano não é uma luta pela sobrevivência,
É uma luta pelo o nosso nascimento interior
Que não se angaria a princípio na essência,
O que nos faz parecer um desejo sem fervor.

Sinto a grandeza do universo,
Sinto a fragrância da realeza em mim,
Só que quando caminho me parece que tudo
De repente se rompe, se consome, se quebra!
Sinto-me comportando cacos de vidro no estômago
Um saco de restos, um saco de contos,
Preso a um coração que aos poucos, timidamente,
Se congela e me paralisa.

O dia então que eu souber quem sou eu
Ou eu me mato ou eu deixo de me amar.
Sem querer escolher entre um ou outro
Prefiro ser a interrogação que jamais se qualifica.
Aos outros dispenso qualquer salvação ou justificativa,
Pois as contas que tenho para com a vida
Ela mesma, sozinha, há de pagar
Eu não terei nada haver com isso...

Sou eu quem se deita, quem se levanta comigo,
Sou eu quem nasci e quem morrerá comigo,
Sou eu quem edifico a minha consciência,
Sou eu quem demulo as minhas penitências,
Sou eu e apenas eu, quem mais precisarei de mim!
Sou eu, portanto o único a quem mais devo saber amar.

Então que ninguém, ninguém, se interponha
No meu direito estar aqui, pois quis a vida o meu ser
(Não sei dizer que loucura lhe deu, mas assim ela quis)
Meu ser, portanto, nela há de vigorar
Até o ponto de tornar-se mais impagável
Que uma trágica cicatriz. Tendo sua satisfação
Plenamente por quitada.

Primeiros Raios duma Infindável Solidão (Pedro Drumond)




Primeiros Raios duma Infindável Solidão
(Pedro Drumond)

Ter uma vida para a morte assim como a eternidade em vão
É permanecer em busca fervorosa da sorte
No mesmo compasso que dá sentido a toda desilusão
Do que quer que desencante com facilidade,
Do que quer que dificilmente resgate
Os sonhos inocentes do coração.

Portanto não há de ser tão breve o meu fim
Algo um tanto diferente do que já me soa familiar até aqui.
Não haverá quem note a minha irrevogável ida,
Quem pranteie ou mesmo exclame:
"Oh, meu filho!", "Oh, meu grande amigo!"
"Oh, minha amada!", "Oh, minha doce querida!"

Não será logo mais uma noite sozinho
Algo mais ou menos dolorido
Para quem há tempos acostumou-se despertar
Aos primeiros raios duma infindável solidão.
Sempre insólito, inóspito,
Insidioso, insípido,
Já que incapaz de ter por preenchido
O frágil coração, não serão os anseios da carne
Prontamente atendidos que far-me-ão
Mais ou menos vazio... Logo eu, que sequer sei viver
Da própria verdade que proclamo... Ai de mim!

Neste momento o pranto meu
Convictamente volta-se aos sonhos de amor:
- Já vão embora? Não vão ficar?
Não há de quê, pois já vão tarde!
Ah, e não se preocupem... Não precisam mais voltar!

Veja que tamanha é a importância que me dão
Esses mesmos sonhos de amor,
Que eles se esvaem na bruma misteriosa da madrugada
Sem sequer me ouvirem, caluniarem os meus.
Os sonhos de amor se vão-se embora
Sem darem-se nem o trabalho de dizerem:  "Adeus!".

Meus Olhos (Pedro Drumond)





Meus Olhos
(Pedro Drumond)

Dizem que em meus olhos
Existe encanto, fascínio
E uma pitada de beleza.

Dizem que em meus olhos
Reside-se o perturbado espírito de uma rainha
Que passa por findar os seus inúteis dias
De uma vida tão primordial
Nos sujos calabouços do seu próprio castelo.

O espírito de uma rainha, cujo reinado
Ainda pertinente, segue sem qualquer realeza,
Tal qual a morte de um ser doente
Que se cura a favor da tristeza de sua chaga.

Dizem que meus olhos oblíquos
São a derradeira moradia da alma de uma mulher.
Sendo em cascatas tenebrosas que jorram suas lágrimas
Até encontrarem-se juntas às pedras frias de uma fortaleza.

Desconheço, porém, se seu viver
É coberto de ouro ou de prata,
Riqueza ou pobreza.
O que sei é que ela convive num mundo
Onde mínimas são as verdades que professa,
Enquanto inúmeras são as besteiras que escuta.

Há, portanto, de convencer-me
Do que abrigo em meus olhos
Quem neles enxergar o pedido de silêncio
Simples silêncio...
Já que viver é dormir o sono dos tristes
Pelo privilégio de em sonhos desfrutar
O gozo visceral dos que se acreditam felizes,
Até quando descobrirmos num belo dia
Que somos um ser humano a menos.

Extremo Exílio (Pedro Drumond)






Extremo Exílio (Pedro Drumond)

Por quanto tempo resiste uma alma ao extremo exílio?
Por quanto tempo um amor ainda possui um nome,
Um nome possui amor, um amor por ninguém mais chama,
Alguém nada mais proclama, uma vida não mais se comporta
Mesmo sob as regras do seu próprio vazio? Extremo exílio!

A raiva transborda como hemorragia.
Nossas tristezas no final das contas
Serão o pouco restante de alegria.
Sou na verdade como um poema
Amaçado, rasurado, rasgado,
Esquecido na poeira do fundo de gaveta.

Não perambulo nos desertos,
Não me perco em mausoléus,
Não caio sequer em abismos.
Sozinho, sozinho, e isso é o que há:
So-zi-nho!

A vida tanto se cansou de mim
Que olvidou-se até de dar-me o fim.
Que me restará de uma fantasia que sou
Tão insípida, tão inóspita, tão idiota?
A vida nunca se deu conta de quando cheguei,
Dar-se-á conta de quando eu for embora?
Muito provavelmente não...

Sou um ser de suspiros....
Ser de extremo e único exílio...
Só isso... Sou um ser de coração.

Aflição Maior (Pedro Drumond)





Aflição Maior
(Pedro Drumond)

Aflição maior é aquela de ser incapaz
Na chance de saturar a solidão, as feridas,
As perdas promovidas por aqueles
Que a bom e mau querer do destino
Prossigo acompanhando.

Aflição maior é aquela de não proteger
Nem a mim mesmo, quanto mais os meus
Das incoerências da vida.
Caminho, caminho, caminho...
E quem me garante que chego em algum lugar?

Aflição maior é não poder mais viver
Os dramas, as tragédias,
Os romances, as comédias,
De tantos ilustres personagens
Que me encantam mais que os humanos.
Eternos e etéreos que são como a arte!

Não posso vivê-los, pouco os mereço,
Uma vez que nesse ínterim não adquiri
Tampouco o talento de viver por mim.
Logo quem posso inventar de ser assim?
Somente eu mesmo - "Seu Zé-Ninguém".

Para onde vou, para quem me dirigir,
Depois que tudo, tudo, simplesmente feneceu?
Aflição maior é a passagem dos dias
Não me responderem quando bastado indago:
- Afinal de contas, quem sou eu?

terça-feira, 10 de junho de 2014

Jura de Amor (Pedro Drumond)




Jura de Amor
(Pedro Drumond)

Muitas vezes uma declaração de amor:
- "Eu te amo!" - é o passaporte ideal
Para ouvirmos mais um adeus na vida.
Por outro lado, o ato de amar,
Independente de mais uma futura desilusão,
É a liberdade do espírito que realmente existe
Ao invés de obnubilado, viver em vão.

Na guerra dos sentimentos morre não aquele
Que desesperadamente lutou,
Mas sim aquele que inutilmente
Quisera resguardar seu coração.

Quantas pessoas arrastam-se sozinhas
Queixam-se e lamentam-se,
Procuram ardentemente a comoção alheia,
Sendo que quem lhes vê por fora
Ignora parcialmente as escolhas
Que no passado por elas foram feitas,
Cientes de que tudo o que lhes apraziam
Era mesmo as suas dores, suas negações,
Seus cataclismos e a estúpida covardia paralisante
Da qual submeteram o risco de ser feliz.

(Haveremos de tomar sempre cuidado
Com as vítimas tão aparentemente condoídas.
No fundo, no fundo são perigosas, são indignas!)

A felicidade é um meio, não é um fim.
Erramos quando reduzimos nosso sentido de ser
Ao que raramente chegamos a sentir.
Já o amor, ah, o amor!
Quando passa a não ser uma urgência,
Logo, logo nos chega de mansinho
E naturalmente começa a existir!

Eu nunca soube, portanto, o que fazer da vida,
Nunca soube o que não fazer da morte,
Nunca soube nada sobre mim e nem pretendo.
Para quê me interessar por causa disso?

Sou a minha mais genuína obra prima,
Pois não vejo diferenças entre o mais adornado dos altares
E a mais contaminada das latas de lixo.
Por conta disso, vivo rodeado de pessoas mais vazias,
Mais ignorantes, mais desconectadas,
Mais perdidas no abismo do devir do que eu.
Pessoas que amam me adestrarem às suas patologias,
Daquilo pelo qual seus sonhos fatalmente feneceram.

Eu sou uma jura de amor
Que se declarou inúmeras vezes
E no entanto, sequer fora realmente dita,
Fora realmente ouvida, fora realmente sentida.

O que eu não sou?
O silêncio dos pobres de espírito
E o desvario dos ricos de rejeição.
Das piores, prefiro ser a melhor aberração.
Fico jurado nos bosques, nos ventos,
Nos amores de soslaio... Fico simplesmente jurado
E o amor, se quiser, que se torne concretizado,
Senão... Ah, meu caro, pro-ble-ma seu!

quinta-feira, 5 de junho de 2014

O Ponto Inexato do Amor (Pedro Drumond)




O Ponto Inexato do Amor
(Pedro Drumond)
Paga-se por erros, arca-se com consequências,
Recebe-se o fluxo de tantos efeitos
E lida-se, ainda por cima, com tantas ações alheias,
Incompatíveis que se mostram às nossas emoções.

Quando se é o caso intencional de prejudicar,
De ferir, de constranger, de ameaçar
Nossos afetos e desafetos mais próximos,
Se é, como dizem, "devidamente punido".
Para isso, ao que me parece, deram o nome de Justiça.
"Justiça"... Sei...

Pois bem...
Agora, diferentemente, ao sermos penalizados
Por algo que não seja de nossa autoria
E ainda que o seja - contudo isento de má fé -,
Saímos mau interpretados, desconsiderados,
Perdendo por costume um amor,
Um sonho, uma fraterna amizade
E no pior dos casos, quiçá a vida!

Sendo então por nada, por tão pouco,
Por besteira, por irrelevâncias,
Por intrigas ou mesquinharias alheias
- advindas não sei de onde, não sei de quem -
Que grandes elos, raríssimos sentimentos
Com mais frequência decaem em larvas e ruínas
Tudo num piscar de olhos, de uma só vez!

Tal qual a torre de Babel sobre seus escombros,
Encaminho nossa pré-história ao grande além.
Não há como acusar-se ou defender-se
Quando o mundo finalmente consegue
Reservar a um par de almas, um encontro de ninguém.

Talvez dariam a isso o nome de fatalidade,
Porém em segredo eu chamo de "Injustiça".
O único equívoco de ser inteiro, mostrar-se verdadeiro,
É criar ao outro uma dada importância, um quisto especial,
Que lhe dê toda a presunção de achar-se seu núcleo vital
Para entrar e sair da sua vida como se ela fosse "A Casa da Mãe-Joana".

Pense somente em sua imagem,
Pense somente em sua covardia,
Pense somente em suas necessidades,
Pense somente em seu egoísmo
Para depois esquecer o preço que se paga
Quando seu falso e único mérito é ser sozinho.

Pelo menos aqueles caminhos
Que realmente querem seguir
O rumo do mesmo destino
Não tenderão a se bifurcar
No primeiro naufrágio,
Na primeira turbulência,
Na primeira derrapada,
Na primeira convergência.

Não é, portanto, com a primeira desilusão,
Não é pelo que o mundo estipula,
Não é pela primeira falha,
Não é pelo primeiro limite humano,
Que se deixa de amar, que se distribui culpas,
Que, enfim, se quebram os planos.

Um termina sendo chamado de traidor
Enquanto o outro pertence a pior espécie dos covardes.
Conclui-se então que o ponto inexato do amor
Se dá quando duas mentiras, em parceria,
Deixam de ser uma só verdade.

As Chispas do Inferno de Dantes (Pedro Drumond)





As Chispas do Inferno de Dantes
(Pedro Drumond)

Como proceder diante do amor?
Como morrer dignamente perante a vida?
Como oferecer a essência escassa da alma?
Como conservar uma pura integridade,
Se nem ao menos a maioria de nós
Aprendeu a enxergar o outro
Como um reflexo do que outrossim somos?

Se tudo o que no fundo ansiamos
É pelo momento de disparar tiros no escuro,
Muito mais pelo hedonismo de ser ferido,
Prendendo o outro nas teias do tormento,
Do que para nos ferirmos descaradamente,
Assim sucumbindo por culpa própria,
Como ser o melhor que se pode
Se nem ao menos a maioria de nós
Entendeu o que significa ser humano?

Poeta bom é poeta morto.
Amor eterno é amor que nem viveu.
Saudade se tem do que ainda não se perdeu.
Quando alguém então sair rua afora
Muitas vezes levará uma parte de nós
Que jamais tornará a ser vista...

Mas quem disse que já vira-se antes?
Tudo o que há no cerne de nossa visão
É a escuridão dos olhos que fecham-se
E simplesmente choram as mesmas chispas
Pranteadas por Dante, que espalhou em seu inferno
Todas as esperanças dos trajados mortais,
Cuja natureza nesse dado momento
Por si só já se consagrava perdida!

segunda-feira, 21 de abril de 2014

O Compromisso Sem Fantasias (Pedro Drumond)




O Compromisso Sem Fantasias
(Pedro Drumond)

Não é uma criança que vai indo
E sim um homem que já vem vindo.
Para quê então temer o que nos reserva o destino?

O pior caos que repousa sobre as âncoras de nossas vidas,
Ocorre quando o que nos seja tanto benção quanto maldição,
Recusa-se a alastrar-se ou ao menos percorrer-se
No trajeto planejado pelo nosso único e estreito caminho.
Quando nem mesmo os ventos dos desertos
Ousam perpassarem-se por entre nós,
Quando nem mais ao certo podemos contar conosco,
Quando já fomos raptados por um quase tudo
E pagamos o alto preço pelo simples crime de existir,
De modo que terminamos o nosso enredo à deriva,
Completamente sós... E "C'est fini!".

Quando o amor aparece no meu caminho
Geralmente não sou a sua busca,
Tampouco sou o seu destino.
Quando o amor aparece no meu caminho
Ou já vem acompanhando de alguém
Ou, por outro lado, se encontra desorientado
Não menos perdido... Fico eu, portanto,
Ao alcance de suas simples mãos, porém ele
Enquanto amor, permanece inatingível,
Acenando-me de um plano muito mais além
Da onde me encontro vivo.

O amor me reclama a sua felicidade,
Me reclama a sua solidão.
O amor me reclama a sua plenitude,
Me reclama a sua saudade.
O amor me reclama a sua tristeza,
Me reclama os seus sonhos sem razão.
O amor me reclama os seus inúmeros sabores e dissabores.
O amor não sabe, mas é um fugitivo da prisão do impossível
E há tempos que estou aqui na incumbência de realizar o seu resgate.
E agora (sabe-se lá por quê cargas d'água!)
Ele aparece justamente no meu caminho.
Segundo diz, a procura de um refúgio
Que seja ao mínimo confiável e seguro.
Doravante, questiono:

- Quem serei eu para o meu amor?
Um amigo ou inimigo?

Bom... Basta saber que quando o amor
Deixar um pouco de lado suas tantas reivindicações,
De certo estará mais sujeito a ser amado por mim
Ao máximo que me for possível.

O amor quer abrigo, quer atenção, quer sentido.
O amor me reclama o seu autor e o seu destinado.
O amor me pressiona com inúmeras perguntas
E não se dá conta de que posso ser
A chave para sua grande resposta.
O amor, tão inteligente que se acha,
Comporta-se como um menino tapado.
O amor é límpido e puro, disso não duvido,
Mas de que adianta? No final das contas
O amor sente fome mesmo é de bosta!

Imagine então como é que eu me sinto?!
O que me assombra não é um personagem,
Não é um objeto de encanto, não é nada!
O que me assombra sou eu - alma sem espírito
Que é obrigada a silenciar o seu anseio
Quando outro espírito, vindo de paragens distantes,
Lhe reclama com certa loucura:

- Minha alma amada, por onde ela estará?
Quando vou encontrá-la? Será que ela realmente existe?
Quando os deuses finalmente vão se lembrar que ainda estou aqui?
Ai... Ai... Ai de mim!

Inocente ou demente, mau sabe o amor
Que está se dirigindo diretamente à ela
- à sua alma, dita cuja tão requerida -
Ao mesmo tempo ignorando não saber reconhecê-la.
Isso já é o bastante para que continue atormentado.
Não capturá-la de vez já é o bastante
Para matá-la de maneira mais aflita!

Que se ame transcendental, espiritualmente!
Que se ame única, infinita e somente!
Que se ame não pelo sexo, mas sim pela espécie!
Que se ame em essência, sem que a realidade feneça!
Que eu seja incenso, que eu vire cinzas no queimador!
Que alguém me lance à tempestade
E em forma de pó, liberto eu possa enfim voar!
Até descobrir que a vida que me espalhou
Finalmente extinguiu-me em prol da liberdade
E sendo eu, não um prisioneiro, mas um libertário do amor,
Ao embalo de fina chuva uma valsa, repleta de encantos e magia,
Orquestrem-se a serenata dos deuses para mim e o meu par.

Quem sabe então quando o tempo já estiver esvaído
E não puder mais ser desperdiçado
Por nós, seres tão desmedidos,
O amor a partir do momento que peguntar:
- Qual é o caminho?
Se dê conta de que é ali, comigo, o seu lugar.
Se dê conta de que passar por mim
Implica em olhar verdadeiramente nos meus olhos,
Ao invés de somente em meus ombros esbarrar
Sem nem ter a compostura de desculpar-se,
De modo que se torne bem improvável
O nosso próximo encontro.

Que o amor deixe de ser cego,
Deixe de ser surdo, deixe de ser mudo.
Que o amor deixe de ser deslumbrado,
Deixe de ser acovardado, deixe ser oculto.
Que o amor deixe a utopia de lado
E antes que o tempo nos ultrapasse,
Venha ficar comigo junto à surpresa
Que há tantos infinitos guardo:

Não é a promessa de alegria nem tristeza,
Mas sim o compromisso sem fantasias
De um mundo singelo e único
No qual nós, o amor e eu, somos rei e rainha!

terça-feira, 15 de abril de 2014

Destituindo Os Mitos do Amor (Pedro Drumond)






Destituindo Os Mitos do Amor
(Pedro Drumond)
Se quero destituir os mitos do amor
Começo por dizer que ninguém
É capaz de esquecer outro alguém!
Esquecer alguém como se gostaria
É de fato lembrar-lhe o máximo possível
Até as últimas estâncias!
Ser feliz também é saber chorar
Nem que seja além da última lágrima,
Pois toda superação é um fim do esgotamento.

Mas se as pessoas reconhecessem
A preciosidade de seus tormentos
Jamais haveriam de rejeitá-los
A ponto de desesperadamente
Quererem imputá-los ao fim.
O que de rompante parece ser o certo
Num desenlace prova-se um triste equívoco,
Meus amigos, sei do que digo... Acreditem em mim!

Como é torturante o esforço que assumimos
Afim de tonarmos um amor, finado
Nas regiões insondáveis de nossas almas.
Isso é decompor-nos a tal estado
Que para todo resto do além-túmulo
Se abrem os abraços dos paraísos malogrados,
Logo do absurdo, somos o grande cúmulo!

Como diz o maldito clichê: "O tempo tudo cura!"
Sim... Infelizmente isso acontece...
Estranhamente se perdem as dores,
Se perdem as lágrimas,
Se perdem as lembranças,
Se perdem os desejos,
Se perde tudo o que era propriamente nosso
E o pouco que ainda nos resta é o juramento de outrora
Que amanhã já não é mais nada!

Se quero destituir os mitos do amor
Digo que alguém de coração verdadeiro
É capaz de amar quantas pessoas lhe aprouverem
(Exceto o mundo inteiro!)
Amar, se for o caso, uma, duas, três, mil...
E é bom que assim seja, pois todo aquele
Que movido por uma tosca vaidade
Se vangloria dizendo ter amado uma só vez,
Na verdade só soube usar a sua vida
Para ser um amante empobrecido
Até o dia do seu acabamento - perdido e inválido.

Tudo é irrelevante - incluindo o meu protesto -,
Porém repito, talvez seja improvável, no caso,
Amar dois seres - distintos e separados - ao mesmo tempo.
Considero a hipótese de estar enganado,
Mas por ora percebo que a natureza dos sentimentos
É extremamente absoluta, sem, contudo, ser axiomática.
O amor só percorre em almas que estejam inteiras - nuas e cruas.
O que nos impede de encontrar um verdadeiro lar
Que acabe culminando entre dois mundos rivais.
Amar - conclui-se - é um ato intermediário e não caprichos banais!

Se quero destituir os mitos do amor
Tenho que obrigatoriamente lhe separar do sexo
E o alforriar das chantagens fantasiosas,
Assim como dos falsos princípios,
Com os quais as pessoas bem o enlaçaram.
Sim, pois o que a maioria de nós soube
Só fora tornar o amor um subterfúgio indigno,
Declarando, sem o consentimento do mesmo,
Sua versão manipuladora através do que é sagrado - os nossos instintos.

Se quero destituir os mitos do amor
Tenho que isentá-lo de qualquer virtude ou defeito
Que forem usados para justificar
O ser  humano e os seus atos, a princípio.
Se quero destituir os mitos do amor
Tenho de saber que o eterno
Não significa o mesmo que infinito.

Agora se quero lamentar os indícios do amor
É só me recordar que ele não seja substituível,
Que ele não possa anular ninguém,
Embora uma vez, quando ele se auto-anula,
Nos deixa de cortesia todo um rastro de vazios,
Cuja espécie não mais se devota fé qualquer.

O fato de que não amamos ninguém, exceto a nós mesmos,
Uma vez que nos reconheçemos em almas alheias,
Me diz que estamos numa eterna busca pessoal
E encontrá-la é deparar-se com o seu fim - o outro.
Aproveitando a deixa, portanto, mando um recado
Para um amigo dos velhos tempos - o nobre senhor, Albert Einstein:

Não sei, meu caro gênio,
Se por acaso chegaste a pensar por esse ângulo,
Porém a verdade é que ninguém
Que tenha amado uma só vez também,
Retorna ao seu tamanho ou estado original.

De que nos serve a ciência, a política, a religião,
A filosofia, a arte, se esse nosso complexo interno - o amor -
Simplesmente não encontra-se nem acima, nem abaixo,
Não encontra-se nem sequer ao meio
Do que tendemos a chamar de bem ou de mal?

De que vale a vida se o amor é a morte
Da qual jamais se decompõe ao todo o individuo
- Inclusive o enverniza junto ao seu elo perdido
Como justificativa inquestionável
De sua a primeira e última existência fatal.

Meu caro amigo, humildemente pergunto-lhe:
Antes e depois de tudo isso, nesse exato e fatídico instante,
De que nos valemos afinal?

domingo, 13 de abril de 2014

Brasília (Pedro Drumond)







Brasília
(Pedro Drumond)

Brasília...
Pacata, limitada.
Corpo sem alma.
Sexo sem tesão.
Registro sem identidade própria.
Parida sem sequer nascer.

Brasília...
Aparência sem essência.
Conteúdo sem personalidade.
Rebeldia pessoal.
Clandestinidade coletiva.

Brasília...
Muita magia para pouca elite.
Pouca elite para muita distinção.
Brasília pulsa sem ter adquirido
Sequer um singelo coração!

Vá a padaria, olhe para o seu próximo.
Descubra uma grande ironia:
Dar atenção sem interesse,
Receber atenção sem justificativa,
Olho no olho, sorriso ou simples presença,
Quem sabe um: "Bom dia!".

Qual é o nome do seu vizinho?
Converse com seus amigos.
Largue o diacho desse celular!
Deixe as crianças serem só crianças
E quando estiver entre as pessoas
Finja que é gente, mas não revele-se um robô.

Já testemunhou o céu hoje?
Faz sol ou faz chuva?
E o que faz você com essa cara de bunda?
Cocô!

Converse - pare de teclar!
Enxergue - pare de ver!
Ouça - pare de escutar!
Sinta - pare de reagir!
Toque - pare de pegar!
Seja - pare de fingir!
Viva - pare de hesitar!
Morra - pare de não existir!

Coma o seu próprio banquete se for o caso
- Brasília te enche a barriga?
Credo! Pois para mim não passa de petisco.
Vou pichar os seus blocos cinzentos
De pura e impagável poesia:

Você não é boa de cama,
Mas vamos trepar logo, vamos Brasília?

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Irrelevância (Pedro Drumond)





Irrelevância (Pedro Drumond)

Vestimos fantasias de seres humanos.
Acreditamos no que vemos, no que ouvimos.
Acreditamos no que sentimos e no que tocamos,
Porém insondável como é o nosso espírito,
A vida é algo que nos revela a sua magia
Para nos ocultar da nossa fantasia.

Colhemos retalhos para aparentar
Uma dada forma de ser, quando na realidade
Somos mais especiais do que podemos imaginar
E acessando a essência dessa nossa importância
Menos engrandecidos ficamos, pois percebemos
Sua simplicidade em nos convencer
Que absolutamente nenhum de nós somos
- Tanto para o mundo exterior, quanto interior -
De fato quem aparentamos ou gostaríamos de ser.

Seja além, seja aquém,
Um fato do presente
Não pode ser de todo uma verdade,
Pois todo presente é convertido em mutação.
Entre a certeza e a dúvida é vero que o homem
Está destinado a alcançar o vácuo da eternidade.

Queiramos, portanto, elaborar
Outras questões universais pu na melhor das hipóteses
Nem dependermos da conclusão de qualquer uma delas.
Talvez assim, nos tornaríamos mais lúcidos
Mais esclarecidos, quem sabe, quanto aos significados
Entrelaçados à nossa simples presença,
Ao contrário de sermos inacreditavelmente
Mais ignorantes, mais filhos da dor
E menos conectados com nossa igual existência
Na medida que nos canta o passar do tempo.

Iluminemos nossa visão do grande nada
Até nos cegarmos da única irrelevância
Que ainda nos resta pelo menos - o amor!

sábado, 5 de abril de 2014

Missiva (Pedro Drumond)





Missiva (Pedro Drumond)

Sei que tu procuras, querido,
Os motivos mais banais e acessíveis
Para venturosamente sorrir.
Tu procuras o começo
Enquanto eu, por minha vez,
Perco-me no fim!

Tu vais atrás dos que contam piadas,
Vais atrás das falhas engraçadas,
Das ironias, das comédias, das sátiras.
Vais atrás de tudo aquilo que te arranque
O mais rapidamente possível os sorrisos.

Talvez assim acreditas na tua missão
Afim de esqueceres que sozinho
Particularmente não há nada que te faça feliz.
Eu, pelo contrário, me alimento do pranto.

Saio, quase que como uma guerreira medieval
Imponente sobre seu cavalo de sangue nobre
Em busca, não de ti, príncipe encantado,
Mas de todo drama, de toda tragédia,
De todo lirismo que o mundo ouse derramar
Com a acidez do amor mesclado em dor
Nesse meu receptáculo que outrora me deste,
Batizado de coração.

Tu te alimentas da alegria
Para que tua tristeza seja sanada.
Vais em busca dos outros
Para sanares nossa mesma solidão.
Eu, por teimosia de ser diferente de ti,
Já me alimento da poesia sombria
Do que sangrar com máxima tirania a minha alma,
Do que arrebentar com crueldade, com raiva,
Com melancolia, com sôfrego penar,
As represas das minhas lágrimas,
Pois só assim sano com a minha felicidade
Que talvez seja um defeito meu de nascência.

A vida é uma irrevogável comoção!
Convivo com a verdade dos jubilosos de espírito
Que descobriram o prazer da felicidade
Nos lamaçais do sofrimento, pois banharam-se sozinhos.
Assim não é de causar-me grandes estranhamentos
O que mova a tua vida - uma alegre ilusão.

Dessa forma, mesmo sem precisar-te buscar,
Satisfeita adormeço, pois trago-te no coração
E não preciso sonhar-te, mesmo para amar!
Por isso como uma guerreira sem voz
Teu nome eu já não chamo.

Não preciso mais dos sonhos, querido príncipe encantado,
Pois por impossível que seja, te amar, eu já te amo!

quinta-feira, 3 de abril de 2014

O Grande Sábio da Dor (Pedro Drumond)






O Sábio da Grande Dor
(Pedro Drumond)
Lembro-me como se fosse ontem...
Eu era ainda uma alma juvenil,
Inocente e pura. Ainda encantada pela vida!

Fazia-se alta madrugada
E havendo-me recolhido ao grande silêncio,
Poderoso protetor na escuridão do meu quarto
- O qual eu jamais iria imaginar, naquele período,
Como meu futuro recinto de solidão -,
Eu, ainda tão jovem, ainda tão moço,
De coração tão frágil e menino,
Resolvendo que era chegada a hora
De me entregar ao repouso do corpo
E aos diversos sonhos do espírito,
Resolvi dedicar uma franca conversa à vida,
Algo que eu não costumava evitar,
Pois tinha para mim que os meus anseios
- Fossem eles quais fossem -
Tratavam-se das as coisas mais importantes do universo.

(Que presunção essa minha, confesso... Não preciso disfarçar...)
Eu achava que realmente era
- As coisas mais importantes do universo, os meus anseios -
E quer saber qual é o meu real defeito, quer? Eu ainda acho!
(Agora diz ai, isso é para rir ou chorar?).

Este velho que hoje enamora
Com sincera ternura o oceano do seu passado,
Naquele instante rogava uma espécie de prece
Especialmente à essência que lhe assistia - a vida -
Nessa época, muito embora resguardado,
Eu ainda confiava nela.
O menino, que nem sabia direito quem era,
Pedia à vida que finalmente lhe adiantasse
As respostas dos grandes homens.
Que o fizesse, finalmente, conhecedor do amor
(Se soubesse o quanto essa gradeza lhe tornaria diminuto...).

Conhecedor do amor, quis ser o menino.
Se soubesse como seria fácil tal intento
Devido ao fato ainda não ter sido
Pelo mundo corrompido,
Jamais teria ousado proferir tal anseio,
Se tornando ainda mais cedo que o devido
O grande sábio da dor.

"Cuidado com o que se pede, pois pode-se conseguir"
Se ele tivesse escutado os conselhos de sua avó!
Hoje, ainda moço vistoso,
Não teria prematuramente chegado ao seu fim.
E nesse labirinto deserto o que mais o atormenta
É o fato de não poder nem mais associar-se
Àquilo que aprendeu a chamar de amor,
Algo que hoje também comprova-se
Não ser mais a sua dor primordial.
Seus sentimentos e suas extremas chagas
Agora são vertentes de outros tempos
Já bem ultrapassados - fazer o quê?

E a vida, naquele momento, curiosa me escutava!
Não é que a danada realmente preferiu atender-me,
Dando-me o amor solicitado,
Exceto da forma como eu imaginava?
Eu queria viver uma história romântica,
Assim como normalmente vivem todos os outros,
Mas o que a vida reservou-me foi um verdadeiro legado,
Nutrido de sentimento, de recolhimento,
De prazer ingênuo e um realístico senso,
De um inconfessável desgosto. (É...).

A vida não deu-me o amor que eu pedi,
Mas por sua vez deu-me o amor
Que urgentemente eu mais precisava!
A vida não deu-me o amor pelo qual amando
Eu poderia gloriosamente morrer,
Sendo que o mínimo que eu pude ter
Bastou para descobrir que eu poderia viver tragicamente
Mesmo sem saber como, mesmo sem saber por quem,
Mesmo sem saber pra quê!

Hoje em dia, mesmo velho,
Tenho profundos receios de revelar
Os meus sonhos mais genuínos à vida,
Já que o tempo fez-me um pouco esperto.
Mesmo assim sei que eles - os meus sonhos -
São tudo o que menos posso ocultar
(Da vida? Não... De mim!),
Pois o que um dia foi a minha grande surpresa
Não salvou minha pobre alma
De ter-se esquecido da tristeza.

Da tristeza de não poder mais ser triste,
Da tristeza de não poder mais poder chorar,
Da tristeza de mesmo sem ter amor,
No estoque de suas reservas
Continuar fornecendo seu doce amar!

terça-feira, 1 de abril de 2014

Deserto dos Amores (Pedro Drumond)






Desertos dos Amores
(Pedro Drumond)
Hoje estou pairando nos desertos
Nos desertos da vida, da alma.
Nos desertos das esperanças abastadas,
Nos desertos dos amores.

Ouço o canto das sereias,
Ouço o canto dos deuses,
Ouço o canto das areias
Que varrem as minhas dores.
Ouço as orações do infinito silêncio
Que povoam essas minhas inóspitas,
Insólitas e insondáveis regiões.

A mulher coberta pela burca negra,
Os véus das dançarinas endeusadas,
A flauta, junto a todo o som
Advindo dos gemidos da lua,
O calor árido, derretido à maldade sombria,
As cores, os cheiros, as jóias,
O passado eternamente presente.

As danças, as valsas, e até mesmo
A própria devoção ao religar.
Sou eu, estou eu, sinto eu...
O deserto e eu... Sou um amor para desertar.

Porém algo nesse meu deserto desapareceu:
É o meu tesouro perdido!
Vagarei mil anos a mais, uma noite a menos,
Morrerei finalmente no Egito,
Embalsamado com o meu amor,
E a minha estrela guia, Gizé, será a minha guarda
Enquanto todo meu segredo
Será absorvido pela fome das areias movediças.

Te espero nos desertos
Onde quer que você esteja.
Você que nem sei quem é,
Você que nem sei se existe,
Você que nem sei se é humano
Para minha vaga certeza.

Mas seja lá você quem for,
Nos desertos a sua espera já estou.
Amor da minha velha vida
E da minha jovem morte!
Não se esqueça, querido... Nos desertos...
Isso! Com todo o meu amor.
Um dia nos juntos estaremos,
Seja por destino ou seja por sorte.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Presente Estático (Pedro Drumond)






Presente Estático
(Pedro Drumond)

Estou diante da tão rarefeita lâmpada mágica.
Estou diante de um guloso buraco negro
Que pode me trazer à margem da realidade
Todo o imaginável e inimaginável disponível
Que eu bem queira e possa exigir.

E o que eu faço com isso? - você me pergunta.
Nada! Absolutamente nada! - tenho que confessar.
Não chego a lugar nenhum, tampouco
Venho me sentindo propício a um dia chegar,
Pois me é nítido que tudo já é o fim!
E mesmo que eu pensasse diferente - antes que me conteste -
Quer queira eu ou não, é assim... É assim sim!

Tenho um grande poder em minhas mãos,
Mas estou impedido de aplicá-lo, de saber usá-lo,
De até supostamente merecê-lo.
Estou como quem deveria da sua vida já possuir
Algum sentido que lhe bastasse,
Como se tal fosse a premissa de poder ser
- Quando for tempo de crises ou calmarias -
Melhor assistido, melhor incentivado,
Mas não... Ai de mim! Nada mais me inspira,
Eu nada mais aspiro. E é justamente isso o que deixa
Minh'alma ainda mais aflita!

Eu posso chegar a ter todas as respostas que bem quiser
Sim... Neste exato e fatídico momento
Tudo o que me aguçasse a curiosidade seria revelado,
Mas de que adianta? Estou congelado!
Estou petrificado por capricho do destino.
Veja bem, nessa minha alma,
Que outrora tinha-se por inquieta,
Não urge sequer qualquer temperatura,
Qualquer pergunta para sanar o meu vazio.
Céus, o que está acontecendo comigo?

Não me orgulho de nada que digo,
Mas também tudo o que expresso não lastimo.
Apenas contesto, confesso e constato.
Sei que expressar as minhas guerras
Não faz de mim um melhor ou pior soldado,
Mas sim, independente de sair vencendo ou perdendo,
Essas épicas batalhas internas fazem de mim
Alguém mais digno de ser considerado
Como um grande guerreiro
Ou mais provavelmente um fracote lutador.
Resumo da ópera:
Enquanto poeta, enquanto sentimento,
Posso me dedicar a tudo, a todos...
Mas hoje em dia, exceto ao amor.

Não me vem em mente
Algo qualquer a se alcançar no futuro,
Tampouco algo a se resgatar do passado.
Estou simplesmente no presente, estático,
Paralisado, vazio, sem princípios nem desvios.
Estou comprovando tudo aquilo
Dito pelos nossos antepassados:
- "O ápice da glória humana" -
Segundo os mesmos, difícil de de ser alcançado.
Para mim o intento ocorreu com a facilidade
Que se cai uma folha de outono.
Os rastros deixados por essa estação
Se acumularam como a pior consequência
De eu ter sido escolhido para o que não almejei.

Coube a mim, portanto, desiludir-me
No que diz respeito ao então grande sonho do mundo
Que vislumbro a acenar-me pelas janelas de um trem
Que segue a contra-mão do meu próprio tempo.
Lá fora um ditador criminoso ou um falho segredo
Significam para mim o que somente entendo
Como o meu grande pesadelo.

Impelimentos da Alma (Pedro Drumond)




Impelimentos da Alma
(Pedro Drumond)

A alma me impele a fazer das coisas mais absurdas
A minha mais concreta normalidade.

A alma me impele buscar
Aquilo que não se encontra.

A alma me impele a sentir
Aquilo que não se sustenta.

A alma me impele a compreender
Aquilo que não se entende.

A alma me impele a desejar
Aquilo que não satisfaz.

A alma me impele a ser
Tudo aquilo que já não sou
Nem gostaria de ser mais.

A alma me impele a seguir meu itinerário
Na condição de um viajante perdido.

Sem mantimentos e sem as demais reservas.
Fazendo-me ficar impelido, quando em prece,
A não querer mais saber aonde vou.
Doravante procuro alguma forma de me esconder
Disso que os homens prevem como destino,

Sendo que eu, por minha vez, constato
Tal ideia, isenta de suas variantes e demais frestas,
Como um inexorável, longo e sufocante delírio!

HEY, TIO, VOCÊ É SOZINHO? (Pedro Drumond)






HEY, TIO, VOCÊ É SOZINHO?

Hoje eu tive um sonho um tanto quanto diferente e especial. Por sinal, um belo sonho. Um sonho poético. E ao mesmo tempo um sutil tapa na minha cara dado pela minha alma, por suposto. Pois bem, comecemos...

Eu estava em uma cerimônia, um reunião eventual, dada num lugar aberto, árido e botânico. Haviam muitas pessoas incluídas nessa ocasião, palestrando sobre coisas diversas. Não as reconheço como meus conhecidos. Eu só podia mesmo era ouvia o cochico de suas vozes. Eu, me encontrava na verdade tutelando uma garotinha. Minha atenção e os meus cuidados eram totalmente voltados à ela. Sim, era uma linda menina aparentando uns cinco, seis anos de idade. Uma boneca! A garota, que me inspirava um profundo instinto paterno (o que definitivamente não possuo) era portadora da Síndrome de Down. Reconheci isso nitidamente. E nesse sonho, que talvez fosse um escárnio do destino para com a minha realidade, a linda garota conseguiu a proeza de silenciar todos os então presentes naquela cerimônia, inclusive eu, dirigindo-me a seguinte pergunta:

- Hei, tio, você é sozinho? - soltou tal questão de modo tão despreocupado.

- Sozinho, eu? - nervoso sorria, sem entender - Sozinho, você quis dizer? - perguntei de modo carinhoso.

- Sim, tio, isso mesmo, sozinho. Você é? - repetiu a garota de modo ainda mais angelical.

- Bom, querida... - nervoso - Eu acho que não... Não! - firme - Mas por quê a pergunta?

Todos estavam atentos ao nosso diálogo. De modo descarado e ao mesmo tempo ansioso.

A garota então respondeu com propriedade e pureza:

- Bom, eu estranhei o seu silêncio, pois você é o único por aqui que não fala de amor!

O único por aqui que não fala de amor...
O único por aqui que não fala de amor...

E esse foi o sonho que a fábrica onírica e pertubada da noite reservou para mim.

Seria essa passagem, esse devaneio, um mero sonho ou a mais lúcida expressão da minha (ou da sua) realidade?

Eu sou sozinho?
E você, é sozinho?
Bom, vamos falar de amor?

- Pedro Drumond

domingo, 30 de março de 2014

Almas Sangrias (Pedro Drumond)







Almas Sangrias
(Pedro Drumond)

Um amor aéreo traduzido sob o aspecto
De qualquer outra paragem.
Apenas a angústia de amar
É o nosso alívio de existir - o resto? Bobagem!

Amar seres de paragens distantes
Como se tudo o que nos fosse dado
Se tratasse de afetos aspirantes.
Difícil é acreditar no chamado
Do que quer que esteja
Ao nosso mero alcance
Dessa forma, o tempo, de um modo orgulhoso,
Vai se tornando cada vez mais perdido.

Não existem momentos para as almas sangrias
Que nascem e morrem num mesmo suspiro
E eternizam suas próprias histórias
Que jamais ocorreram
Nas curvas de um mesmo instante.

Ter o corpo preso à Terra
E o coração ligado aos céus,
Assim alguns amantes
Afrontam a medida certa
De se conectarem ao amor,
Regido sob o percusso dos mausoléus
Próprios de um mundo estranho,
Onde quem aparenta-se imbatível
No final das contas é o mais propenso dos falíveis.

Estamos em uma dicotomia distinta.
Estamos aquém de nós e além da vida.
Estamos com as nossas almas numa sangria aguda!

A única coisa que queremos saber
Não é aonde estamos ou para quê serve coisa alguma.
A única coisa que de fato urgimos em ser
É a sombra de quem não acompanhamos.

Renascedor das Cinzas (Pedro Drumond)






Renascedor das Cinzas
(Pedro Drumond)

Você, quem está renascendo das cinzas,
Porque ainda não foi carbonizado por inteiro,
Confesse que tudo o que menos te preocupa
É o que fará o destino de ti mesmo,
Pois fácil já sabemos que é morrer...
Morrer de medo!
Na realidade o maior risco que corremos é viver...
Viver um segredo!

Viver um segredo? - você me pergunta -
Sim, algo qualquer do qual você revele para todos,
Mas tenha a obrigação de ocultar
Principalmente de si mesmo,
Do contrário acabaria fazendo
Uma tremenda besteira, concorda?
Quem sabe um tiro na cabeça?

A verdade é que aquele quem renasce das cinzas
Aprende a desejar tudo, exceto o fim de suas tristezas.
Senão, que fim levariam as suas certezas?
Cadê o nosso gim nessa hora?

Temos muito mais
A necessidade de nos sabermos frágeis,
A necessidade de nos sabermos fracos,
A necessidade de nos sabermos ninguém,
Do que a simples e boa educação
De nos ignorarmos, de permanecermos aquém.
Ainda que seja propício ficar alheio a todo resto,
O segredo é ir além de onde havíamos começado.

Diga-me, renascedor das cinzas,
Em nome de tudo que tem-lhe fatigado,
Como você será amado por alguém - se é tudo o que mais te peço?
Diga-me, renascedor das cinzas - veja bem, não vale me ludibriar! -
Como seremos, ambos, amados por alguém,
Se nem a nós mesmos somos capazes de amar?

quinta-feira, 27 de março de 2014

Vírus Sentimental (Pedro Drumond)





Vírus Sentimental (Pedro Drumond)

Ah, meu coração que já foi tão sufocado
E por pouco escapou de morrer de amor!
Hoje, vive a procura da sua dor,
Perambulando em esquinas duvidosas
Na certeza de prosseguir ao encontro das correntes
Que outrora haviam-lhe paralisado.

Ah, meu coração que agora é uma bela pluma ao céu,
Faz-me sentir o estranho fato de ser livre
Quando em outros tempos, claustrofóbico,
Tivera mais aconchego. Meu coração, antes injustiçado,
Hoje em dia daria tudo para voltar a ser réu,
Para amar com desespero.

Por que me entristeço à toa?
Sou poeta, meu caro - lamento -
Se eu não tiver alguma tristeza
Sem problemas, eu invento!

Passamos nossa vida em busca de tudo
Que nos preste a gentileza
De trazer o sabor da "primeira vez".
Amar, meus amigos, é sempre um ato inédito
Pouco importa quantas vezes venha a ser repetido.

Como se nada já fosse familiar,
Nossas outras tentativas fortuitas de doação
São apenas o que temos para desperdiçar,
Já que o nosso vírus sentimental
Jamais se vê esgotado do deserto que é existir.

Ah, meu coração... Ah, meu coração!
Amanhã por causa do amor
Sonharei em ser réu
Voltado a uma pena sem fim,
Enquanto isso tudo o que tenho
Permanece restrito e velado
Por ora não passo de mais um
Ou menos outro amante injustiçado.

Esquecimento, O Signo da Vida (Pedro Drumond)






Esquecimento, O Signo da Vida
(Pedro Drumond)

O que há de mais irritante na vida
É saber que tudo o que nos rouba o eixo no dia a dia
Futuramente poderá ser recordado
Como um signo de imensa saudade!

O que chutamos porta afora,
O que tanto renegamos,
Um dia pode vir a ser
O nosso rarefeito elixir da existência,
Tornando-se por fim
O nosso clamor por piedade!

Pudessem as pessoas esquecerem-se
De todos os deuses que veneram,
Outrossim esse tal Deus energúmeno
Pelo qual - sem muito convencimento -
Permanecem precavendo-se.

Pudessem as pessoas esquecerem-se
Desses tantos anjos e demônios alados
Que por aí - não sei como - bem espalharam,
Já que uma vez, esses pobres coitados
Não possuem nenhum pouco de sossego,
Nem sequer têm aonde morar!

Pudessem as pessoas esquecerem-se
De toda e qualquer ilusão
Seja de tempo, espaço ou matéria,
De toda e qualquer distinção
Seja de bem ou de mal,
Como se ambos não fossem
Nada mais, nada menos,
Que o valor de uma mesma e incalculável moeda.

Pudessem as pessoas não mais apoiarem-se
Sobre as suas seculares e primitivas muletas
Até que deixassem de acreditar
Que ainda existam grandes diferenças
Entre o que hajam-lhes trazido felicidade ou tristeza.

Pudessem as pessoas fazerem
Uma pomposa marcha fúnebre
De modo que ocorram-lhes
Uma completa lavagem cerebral
(e ao mesmo tempo cardíaca!)
Ao afogarem-se nas profundas águas transparentes
De suas essências ocultas, de suas ideias cristalinas.

Pudessem as pessoas desconsiderarem
Tudo o que quer que ainda precisam atender,
Seja por superior ou inferior
(a ordem é sempre uma desordem!).
Quem sabe assim elas não seriam mais humanas?
Quem sabe assim elas não seriam regidas pelo signo do amor?

Pudessem as pessoas esquecerem-se
Do que não seja apenas elas mesmas - só para bastar! -
Pudessem as pessoas simplesmente
Se esquecerem de esquecer,
Já que o signo do esquecimento,
Ascendente daquilo que nos ensina o mundo,
É a maior lembrança da sabedoria do universo.

Já saibam que a vida não é perfeita
Por isso há de ser tão sublime.
A vida é uma jovem, velha bêbada,
E de moral deveras duvidosa,
Pois acredito que é justamente isso
Que faz o signo da existência tornar-se,
Sobretudo sóbrio e confiante,
Sendo que a vida nos responde pela eternidade,
Pois ela não passa de um simples instante,
Portanto, podemos respirar aliviados...

Atenção: O signo da vida lhe alerta, não se esqueça!
"Sorria, pois a morte pode estar ao seu lado."

sábado, 22 de março de 2014

Encarando-se Depois de Morto (Pedro Drumond)





Encarando-se Depois de Morto
(Pedro Drumond)

Que devaneio mais assombroso esse meu!
Será angelitude ou possessão de minha parte?
Só sei que não se explica
A inconfundível paralisia do espírito
Sofrida quando, no ápice da loucura
De ser intensamente sozinho,
A pessoa passa logo a se imaginar falecida.

Bem assim... Como se por um segundo
Fosse alguém totalmente distinto de si:
Encarando-se de fora, encarando-se depois de morto.
Passando por suas fotografias, por suas declarações,
Por suas obras, por suas digitais, pelos seus rastros,
Com o pudor e zelo com que se conecta
Com o atalho deixado por uma alma
Que já fora autora, cedo ou tardiamente,
Da sua irrevogável partida.

Como é estranho então morrer internamente
Se for para se encarar exteriormente
Com os sentimentos oriundos de "outro",
Somos regidos pela brevidade de um tempo qualquer.
É como se a morte emprestasse-nos certa beleza divina.

Como se ela, a dita morte, tornasse a pedra
Num piscar de olhos, um fulguroso diamante.
Como se ela, o que chamam de fim,
Levasse-nos a encarar
O nosso ente próximo ou distante
Como devíamos tê-lo feito por toda vida:

Como um milagre que não se conspurca.
Como um mito, uma miragem, uma visão
Que por ser intangível, mais real se qualifica.
Como de fato um milagre da vida
Que não causa maiores perturbações,
Posto que a natureza humana
Depois de provar-se humana
Através de sua mortalidade
É mais sincera, é mais pura.

Como uma natureza que não nos fenece
E sim como um milagre
- A simples existência do ser -
Coisa tal que singularmente nos dignifica!

A Única Novidade do Amor (Pedro Drumond)





A Única Novidade do Amor
(Pedro Drumond)

Tu que me deixas para viver de outro amor
E me encarregas de enterrar a nossa história
Até as suas derradeiras quimeras.

Tu que me deixas,
Posto que outro amor lhe chama,
Hás de por outro destino trilhar
Sem, contudo, se deparar
Com o mesmo coração elegido
Com a alma que no começo dizia-se certa.

Tu que me roubas tuas vestes, tuas tralhas,
Tu que me limpas os armários e o ninho bélico
No qual juntos, em sonhos diluvianos, bem nos amávamos,
Perdes o nosso lar, agora sem fascínio
Sem sequer pensares nas causas
De terminares a vida dentre em breve
Como um andarilho dos sentimentos.

Tu que me deixas para viver outro amor
Surpreso que estás por não ter de mim qualquer reação,
Respondendo por mim digo que estão
Apenas essas lágrimas densas e internas
Ao som de profundo infindo silêncio.
Não sabes tu, ora ,meu Orfeu, ora  meu Jasão,
Quão inútil é travar uma guerra no coração
Entre aquele que ignora o propósito de ser feliz
Para matar quem fica à míngua de sua tristeza.
O amor não morre, pois ainda sobrevive após o fim.

É certo que estás de partida,
No entanto antes mesmo de teres ido
Não foste tu quem me fugiu em tua ida sem volta.
Não há o que me desagrade nesse ciclo.
Digo sim que fui eu, quem descobri
O que é a liberdade do amor - algo chamado Adeus.

Sou condenado a vê-lo voar
Para bem longe do meu ninho.
Cria-se o mundo, deseduca-se o lar.
Aliás, já foste, querido?

Entre alegrias e tristezas
A única novidade do amor
É que nele não há mais surpresas.
Entre alegrias e tristezas
A única novidade dos humanos
É que suas mentiras são suas certezas.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Garganta Assassina (Pedro Drumond)




Garganta Assassina
(Pedro Drumond)
Sacos de areia,
Incêndio que permeia,
Arranhões, farpas,
Cacos de vidro, veneno corrosivo,
Garganta assassina, garganta benevolente,
Garganta traquina, garganta conivente.

É pela garganta que meu espírito vai se esvaindo
É pela garganta, instrumento dos meus suplícios,
Que de uma vez por todas esqueço de tudo e morro.

Silêncio, forçado, que dói até as entranhas
Silêncio, sagrado, que alivia a peste que tanto me sangra.
Regurgitar tudo o que engoli da vida
Até esvaziar-me, passivamente assistindo
Tudo o que a morte lentamente me tira.

Vou morrer pela garganta é nítido!
Já que meu coração tantas vezes
Veio parar nela. A vida não vale
Os seus resgastes, as suas reviravoltas,
Tampouco o preço que mensura
Pelas sequelas que dela são acarretadas.

Lá fora, o majestoso tempo, por sua vez
Deslancha-se numa tormentosa tempestade.
Pelo meu degrau também surgem alguns raios de sol.
Estou morrendo discretamente
No meio de uma multidão, sem chamar atenção.

No entanto, junto aos sonhadores e descrentes,
Pertenço para a nossa existência anfitriã
Ao mesmo rol daqueles que nunca tiveram
A sábia sorte de poderem para si mesmos mentir,
Afinal de contas, que importância me convence
Da necessidade de estar aqui?

Sejam os outros apenas os meios
Pelos quais nos fragmentamos
Na ilusão de nos perpetuarmos.
Seja por nós mesmos
Quem iniciamos nossa jornada
Mais atraídos pelos caminhos descobertos
Do que pelo nosso anseio já conhecido.

A verdade é que sozinho vim ao mundo
E será justamente sozinho de modo secreto,
Repentino e impactante, que dele hei de partir.
Simples assim...
Fim!

domingo, 16 de março de 2014

Conversa com Margarida - Pedro Drumond




Conversa com Margarida - Pedro Drumond

Olá, Margarida! Que bela manhã de sol, não acha? Por que vim aqui? Ah, faz tanto tempo que não nos encontrávamos! Por acaso não está feliz em me ver? Sei que está feliz porque só posso te colher quando for para te regar de alegria, de vida! É disso mesmo que você se alimenta, não é mesmo, Margarida? Quem diria, diria você, Margarida, que no meu peito uma brisa de ternura e liberdade da solidão, me sombreia, como todo esse acervo rico com o qual você convive nesse ardoroso jardim? Pois bem, vou despetalar cada inocência sua junto às inúmeras intensões que se enlaçam na minha alma. Para começar, Margarida, pergunto-lhe: O que faço comigo, hein?

Eu estava distraído, Margarida. Eu estava andando assim, um pouco confiante, mas nada tão excitante; Eu vinha pelo seu encontro quando fui interrompido. Um olhar do outro lado da rua berrou o meu nome. Era um desconhecido. Os olhos falam em segredo aquilo que a alma torna explícito. Ele veio falar comigo, Margarida, você acredita? Ele não era o amor, ele não era amigo, ele não era dor, ele não era nem inimigo. Ele era espírito! Um espírito maravilhoso desses em forma de gente. Desses que deixam nosso coração doente. Doente de vida, vida que não finda, sutil aforia de tantos enganos - magia, Margarida, magia!

Conversamos, Margarida. Silenciamos muito também. Margarida, hoje eu vivi um amor sem sequer planejar! Tudo o mais próximo que de amor que pude alcançar, eu apenas havia sentido, jamais de fato vivido. E hoje - olha que estranho! - eu vivi um amor sem necessariamente o sentir. Hoje eu terminei sem penúrias, sem precisamente ter chegado ao fim. Acho que foi isso. Margarida, pela primeira vez eu vivi um amor! Um amor que em apenas algumas horas serviu-se de um tempo indistinto para aplacar toda a minha vida de ciganice. Um amor em horas que me fez pertencer a uma classe de seres humanos que sem saberem o por quê, comem capim, como se sentisse o sabor divino de um digno banquete dos deuses. Margarida, eu vivi um amor em horas que eu vou levar para toda a eternidade! Um amor de fim de tarde. Não importa se eu não passarei outras tardes como essa. Houve outro amor, esse mais trágico e perdido, que me ensinou a ser sozinho, lembra-se, Margarida? É... Mas não quero que você esqueça de uma coisa: Independente do resultado, toda vez que o amor atravessa os muros de um ser, jamais o deixa ser o mesmo de outrora. Antes eu sentia o amor pela ausência. Agora, incapaz de sentir amor, vivi-o sem delongas, a diferença foi sua presença! Que absurdo, Margarida, que delírio! Se a eternidade for um incomensurável buraco negro, tranquilize-se, não corro perigo. Estou salvo, Margarida, salvo! Eu toquei a alma de alguém que me deu amor, assim como seu amor orquestrou-se comigo.

Margarida, nós conversamos tanto, tanto, assim como eu sempre palestrei contigo. O mundo anda muito insosso, Margarida, você não acha? Ele despencou tempero em meus lábios. Nos beijamos. E falamos de coisas que somente os exilados do mundo dos sonhos seriam capazes de revelar. Confessei a ele até mesmo as minhas sombrias enfermidades. Você sabe, Margarida, doente de vida, não poderia eu esconder o quanto eu já estava anestesiado pela morte. Morte da esperança. Morte do encanto. Morte da vontade de amar. Morte da admiração pessoal. Morte. A vida dele me livrou do abismo.

Ele dizia que foi muito usado pelo mundo, pelos amores clandestinos, assim como eu. Criticávamos aqueles, que denegrindo nossas imagens, jamais poderiam se tornar dignos da sorte que possuíam de serem filhos da nossa natureza. Ah, se todos os que vivem realmente tivessem a natureza humana... Ele me deu a lua, Margarida, disso pode ter certeza. Nesse momento eu não sou um poeta - eu sou uma mentira que de verdade amou! Ele não queria perder a essência dele, tendo sido tão usado pelo mundo outrora, assim como eu também não queria, tendo sido eu quem usei o mundo aos meus caprichos. Nossa diferença é a de que pequei por deixá-la, a minha essência, correr pelo ralo, esvair pelos caminhos. Ele não, ele era superior: Mesmo se embolando nos infernos mais tiranos, tudo o que permanecia salvo era o seu espírito. Margarida, mais uma vez te pergunto: o que faço comigo?

Nós nos fundimos num abraço, Margarida, você sabe o que é isso? Não era necessário sabermos a nossa origem - o destino já era o nosso maior laço! Isso bastava, pelo menos naquele momento. O tempo é senão um aglomerado de momentos, a duração que o encerra não o torna inválido quando aquilo que nos percorre ainda move os nossos passos - pouco importa saber aonde vamos chegar.

Nos amamos, Margarida, em horas, e mesmo assim não optamos por nos possuir. Foi melhor assim. Isso porque aquele homem foi o único que me apareceu, permitindo-me acessar o seu interior; Se espanta, Margarida? Até eu estou estupefato! Bem sabe você que tudo o que eu fiz até hoje foi chegar até às margens alheias, porém jamais, num coração transbordante de águas essenciais, pude penetrar. Assim como ninguém fizera o mesmo comoigo. Danço de acordo com a música. Certo, dessa vez eu me afoguei, Margarida. E assim como eu, ele tinha muita sede de vida, de verdades, de privilegio! Nós fomos uma rara espécie de amor, Margarida, porque quem nos apresentou foi o silêncio, o sorriso, a emoção. Ao contrário do sexo.

Nós caminhávamos na rua, Margarida. Ele fazia questão de mostrar que juntos estávamos. Ele pegava nas minhas mãos, Margarida, ele beijava os meus lábios. O mundo era nossa platéia - nós eramos as estrelas de um teatro, embora o que promovíamos não se tratasse de ficação. Não exibíamos um "faz-de-conta". Um conto fazia de nós dois simples poemas declamados - no final éramos uma só mensagem. Acredita num absurdo desses, Margarida? É... Se eu houvesse previsto, também não teria acreditado. Assim como ninguém o reportou como um grande tesouro perdido, eu também não me senti menos do que um tesouro encontrado. Um homem, por algumas horas, lentas como o cair das areias do deserto, me fez acreditar que o amor de mim não havia desistido. Estava próximo a mim, sempre a me acompanhar, mesmo que despercebido. Ainda que a vida não fosse feita para a realidade minha junto àquele individuo, transcendi a minha história, Margarida, pois o amor, sem que eu houvesse lhe chamado, se pusera a envolver-se comigo.

Aquele homem era uma mulher assim como eu, Margarida, tenho que confessar. Éramos duas mulheres que se amavam, fazendo uma com o outra, tudo o que os homens jamais souberam nos dedicar. Era como se tivéssemos nos arriscando em concretizar tudo aquilo que até então nos era abstrato. Mulheres que se amavam como os homens que traziam no coração deveriam tê-las amado - intensa, despretensiosa e puramente! Depois nos amamos como homens - incompatível nos era a matéria de identidade, Margarida, uma vez que pelo entrosamento éramos o próprio conceito vivido. Depois não tínhamos mais gêneros. Nos amamos como os anjos, Margarida, isso mesmo - como os anjos! -, dos mais excelsos aos mais decaídos. Encontrávamos-nos acima do amor, acima do sexo; acima da vida e da morte, assim como acima do possível. Apenas nos amamos, Margarida, sob a lei do próprio impossível; Como os seres humanos que se entregam ao próximo, atirando-se do precipício; Esperando, por alguma vontade aleatória, na qual os passos, longos e desorientados que vamos dando na vida, deparam-se com o nosso outro espírito - o espírito do outro.

Bem-me-quer, mau-me-quer, agora eu lhe pergunto: O que é que eu faço contigo, hein, Margarida? Será que eu me apego à sua última pétala, como se essa fosse o final veredito? O que há de me responder? Como viver com amor, Margarida, se o amor, isento de minha pessoa, é tudo aquilo com que mais convivo? Bem-me-quer, mau-me-quer... Mas será, Margarida? Depois de lhe desnudar sobra-me o Sol, entretanto eu já ganhei a Lua! Sim, deu-me a Lua, como aliança inafiançável, este quem agora cito.

Pode deixar, Margarida, deixe comigo! Eu não volto mais ao seu jardim, pois agora eu encontrei um desabrigado da alma, ao qual passarei o meu coração como o seu verdejante abrigo. Se eu ficar sem prumos, não será o problema - o sentido da minha vida é não ter um sentido, do contrário o que de interessante eu poderia desfrutar?

Margarina, você está dormindo? Está divagando em quê, Margarida, em quê?!
Bem-me-quer, mau-me-quer. Além disso tudo, apenas me quero comigo!

(Pedro Drumond)