domingo, 28 de setembro de 2014

O Homem & A Barata (Pedro Drumond)




O HOMEM & A BARATA (Pedro Drumond)

- Então é pra isso que eu estou aqui? - pensou - Para ser esse limite, para ser essa confusão, para ser essa loucura, para ser essa esquizofrenia? Eu nasci para ser essa angústia, para ser essa doença, para ser esse desperdício, para ser essa paralisia? Concebeu-me a existência para eu ser esse desespero, para ser esse erro, para ser essa covardia, para ser essa ilusão, para ser essa completa aberração? Estou aqui para ser esse castigo, para ser esse inferno, para ser esse abandono, é só para isso que sirvo?

Parou de dar voz as suas letargias. Estava na sala-de-estar na mais completa escuridão.  Os outros da casa já dormiam. Observou a rua deserta. Enamorou a frieza da madrugada. A indiferença da vida era sua amante. Respirou triste e profundamente. Em seguida olhou para o vago. Como se soubesse que num breve futuro iria rever aquela cena que estava vivendo, aproveitou essa sagaz intuição para dirigir um recado pessoal para si mesmo. "Face to face". Um recado direto de alguém que já estava consciente das rígidas especulações que seriam feitas no futuro ou na revisão da existência pós-morte:

- Está vendo isso aqui? Está vendo como pode ser ridículo esse sofrimento? Está se sentindo abalado por causa dessa inferioridade que tanto alimentou? Está vendo o tempo perdido? Pois não tenha vergonha disso aqui não, meu caro... Eu sou você! Eu sou real! Dai onde você está pode ser fácil, cômodo tirar isso de letra, mas daqui as coisas são bem mais diferentes, completamente opostas! Uma batalha nunca é tão truculenta se vista do alto da colina. Sua tragédia enxerga-se no campo em que se desenvolve. Isso daqui é vida, meu filho, vida! Não renegue jamais a  sua raiz, que sou eu. Eu sou você, querendo ou não, bem ou mau, você sou e fui eu! Seja agora diferente ou não de mim, pouco importa. Se os anjos ou os demônios estão aí do seu lado, apontando para mim daqui, e você está tendo noção da grande ilusão que represento, então que jamais se dê a presunção de desmerecer o que hoje é o meu presente, a minha realidade, e o que para você finalmente é passado, resguardo. Não nos subjugue! Podemos ter tido todos os defeitos do mundo, termos cometido todas as faltas imperdoáveis, termos perdido tudo e todos por culpa própria, termos sido irresponsáveis, levianos, covardes, mas a nossa maior virtude ainda sim é o amor-próprio, é o abraço em nós mesmos, é a propriedade individual que é nossa obrigação manter. É o apoio tanto ao herói quanto ao vilão que somos. Nossa maior virtude é jamais nos virar as próprias costas. Jamais nos envergonhar do que haja de nosso pior, já que é contraproducente se vangloriar do que haja de nosso melhor - não é o que dizem?

E assim saiu da sua caixa preta, dirigiu-se à cozinha, tomou um copo d'água, depois encheu mais uma milésima xícara de café e foi para o seu quarto. Sentou-se na cama e absorto continuou olhando para o grande nada. A televisão estava muda, só alternava cores e imagens. De repente ouviu um instalo, um arranhão, um barulho muito leve, embora naturalmente perceptível para um quarto silencioso. Olhou para os lados até que percebeu próximo ao seu travesseiro uma vasilha de plástico, daquelas que comportam sanduíches e salgados, que ele tinha improvisado como cinzeiro e deixou ali. Dentro dela havia uma minúscula baratinha. Uma baratinha daquelas que não metem medo nem causam grandes ojerizas, mesmo às pessoas mais sensíveis. Uma simples barata, ora essa, qual o problema?! E essa barata, dentro do cinzeiro improvisado de plástico, fazia um pertinente barulho, apesar do seu minúsculo formato, pois lutava desesperadamente para sair de lá, sem conseguir. E assim ele ficou observando a sua batalha.

Observou a batalha da barata para escapar daquela prisão sem pensar em nada, sem esboçar qualquer reação. Parecia uma criança a contemplar estrelas sem nenhum encantamento. E observou a barata. Ela tentava escalar a caixinha de plástico até que acabava escorregando, voltando à superfície. Depois tentava insistentemente uma, duas, três, incontáveis vezes. Estava agitada, eufórica, tentava escalar aquilo ali com ímpeto e desespero. Todas as suas tentativas foram fracassadas. Ela ia pr'um lado, depois para outro, e nada, nada, a barata estava definitivamente presa! Ela deve ter se lembrado dos besouros virados de cabeça para baixo. O quanto já deve ter zombado deles outrora. Pois agora era ela quem estava ali naquela situação vexatória.

E o nosso rapaz ali, olhando, observando, absolutamente focado, concentrado, entretido naquela cena. Nesse momento ele se igualou à vida. Ele sentiu-se a própria existência universal a assistir imparcialmente o espetáculo do desespero humano no alto de um trono. Ele tinha o mesmo espírito, o mesmo sentido da vida, que há poucos minutos antes lhe observava a desabafar todas as suas aflições da janela. Mas ele também reconheceu-se na barata. Ele e aquela barata, apesar da espécie e posições diferentes, estavam inseridas em complexos perfeitamente idênticos - as lutas inacabadas para escaparem das próprias prisões em que se meteram.

Ele observou a barata. Viu-se refletido nela. Ele era a barata a murmurar na escuridão da sala-de-estar agora pouco. O pranto e desencanto de ambos eram os mesmos. Não havia diferença entre o homem e a barata. Seja na repugnância, na fragilidade, na erupção dos sentimentos, nessa hora homem e inseto são os mesmos. Valha-me Deus, que ironia!

Logo, dirigiu-se com muita normalidade à pequena barata:

- É, minha querida, não existe mesmo qualquer diferença entre nós nesse momento. Sei de tudo o que deve estar passando pela sua cabeça. Ah, me esqueci, dizem que você é irracional. Embora o que me seja realmente irracional é o modo como a vida nos trata, concorda? Tenho que dar o braço a torcer, nós estamos na mesma. Só que haverá algo que nos distinguirá nesse caso. Eu vou fazer com você o que eu gostaria que a vida fizesse comigo. Eu te libertarei da sua prisão, assim como eu gostaria de ser libertado da minha. Não serei neutro ou impessoal como a vida. É justamente pela nossa pequenez que aspiramos a grande liberdade. Por isso presumo que você esteja em condições de possui-la muito mais do que eu. Pelo menos parece merecer. Eu estou aqui por você, mas quem está aqui por mim? Não posso contar nem comigo mesmo! Mas você não terá o mesmo fim, pelo menos isso me conforta. Eu lhe tirarei desse cinzeiro torturante e você seguirá o seu caminho. Não se preocupe, não vou pisoteá-la em seguida - seria hipócrita da parte de quem já tanto foi pisoteado por outras forças alheias.

Enquanto ele conversava com aquele inseto, para muitos considerado asqueroso, a barata instantaneamente sossegou-se. Parecia estar realmente prestando atenção ao que ele dizia. Talvez estivesse, por que não? E ele virou o cinzeiro de lado até que ela se foi, com suas patinhas nojentas, na velocidade de um jato, rumo a sua liberdade pura. A mesma liberdade pura que não seria desfrutada tão cedo por aquele ser corrompido, desorientado, estático e perdido. A barata certamente tinha a alma mais límpida do que o estado conservado pela alma daquele homem, um reles solitário.

- Pedro Drumond

Nenhum comentário:

Postar um comentário