quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Sentenciável Afronta (Pedro Drumond)





Sentenciável Afronta
(Pedro Drumond)

A canção tocou na hora errada.
Os sinos da capela bateram na hora certa.
Os olhos dos anjos amantes
Outrora brilhavam de encanto
De pureza, de ternura, de romance.
Os olhos que um pelo outro eram cegos de amor!

Hoje se olham fatalmente
Com o olhar dos humanos:
Enlameados, ofuscados,
Lacrimejados, dilacerados.
Visões turvas, distorcidas
A morte escarnizando a vida
Enquanto a mesma se põe a pensar:
- Existe piada maior do que a morte?
- Psiu, silêncio! Não há o que falar! - responde a dor.

O amor, incapaz de se enxergar,
Resvala suas miragens incrivelmente tão tangíveis,
Esdruxulamente condizentes a qualquer mera alucinação.

Se possuo os elos, antes tão complexos,
Tão unidos, tão emaranhados,
Ungidos que eram pelos deuses,
Que com tamanha erosão agora se desfiam,
Regidos pelo tinir das profícuas agulhas,
Tenho por desmascarado o triste semblante da paz,
Cujo verdadeiro espírito é o meu senso de angústia.

Então jamais terei eu em mente
Alguém a quem perder,
Assim como ninguém poderá
Certo dia me ganhar.
Jamais alguém terá me tocado,
Assim como serei incapaz
De outra alma afetar.
Nada disso será possível, é o que parece,
Justamente por serem invisíveis
As fortalezas que imperam na mente.
De nada se aproximam, se comparadas
Às caóticas resoluções da vida real.
Aparto-me de botar mais lenha nessa fogueira.
Aparto-me de me defender, de toscamente ofender.
Não vou mais me explicar!

Ainda que o ser amado fosse
O único incompreensível da multidão por mim aceito,
Quando o nosso coração sangra, chora,
À porta se aperta e por fim se aparta.
Não precisamos receber mais carinhos.
É nesse momento que o poeta sabe
Quando rasurar os seus delírios.

Verdades Humanas (Pedro Drumond)







Verdades Humanas
(Pedro Drumond)

Na glória, os aplausos.
Na fracasso, o teatro vazio.
Exceto alguns caros amigos
Que estão junto a mim
Até quando nem eu mesmo estou comigo.

O ser humano, incapaz de acertar as contas
Com quem de fato lhe é devedor,
Muitas vezes não tem outros à sua frente
Senão aqueles que lhe amam.

Pois é justamente esses quem pagam o pato
Servindo de alvo e álibis perfeitos
Para acarretarem nossos punhais pelas costas - o chamado desprezo.

Enquanto não cansados o bastante em sermos ludibriados,
Veneramos os que nunca nos deram valor
E passamos por cima de quem quer esteja ao nosso lado.

Portanto, a partir de agora
Só posso acreditar numa confissão de afeto, de amor,
Até o momento em que se encerra a frase,
Uma vez que as verdades humanas
Vivem de fases... Isso mesmo, fases!
Uma jura de amor
Amanhã se torna uma concretização do ódio,
Quiça uma promessa cumprida de dor...

Se podemos facilmente abandonar o nosso lar
Para irmos atrás de quem nem sabe onde chegar
Em quem acreditar?

Os elos humanos morrem
Na exata hora em que nascem.
O amor humano se rompe
Na mesma medida em que se consolida.
A verdade humana chega ao seu fim
Sem os mesmos refluxos do tempo.

Em suma, meus senhores:
A vida retira-se do recinto quando nele adentro.

Almas Ressequidas (Pedro Drumond)




Almas Ressequidas
(Pedro Drumond)

Enclausura-te mesmo na tua solidão.
Ame as ideias, ao invés dos fatos.
Negue o sonho maravilhoso prometido pelo possível
E sofra com as lamúrias dos fatos ilusórios impossível.
É mais fácil atirar pedras em tudo e em todos
Quando nada sair conforme o teu bel prazer.

"As pessoas são ruins", "As emoções são más",
"A vida é ingrata", "A morte é injusta",
Não importa o que se faça, né?
Exceto se acaso encontrar-te imbuído
No conforto da plena indiferença.
A partir de então é mais viável tornar-se descrente
Do que em ti mesmo ter alguma esperança - eis a diferença!

Vá, renegue a tua essência.
Continue acreditando
Que ser amado é ser central, exclusivo
Ou "se-não-for-pedir-muito",  absoluto!
Espere mesmo que as pessoas
Se rebaixem ao teu linho egoísta.
Vanglorie-te da liberdade que diz possuir,
A mesma que serve para tornar cruel
A tua bela forma de amar sufocando a vida.

Afinal de contas, para quê descerrar
Os véus do passado? Gozado,
Pois quando éramos beligerantes
No triunfo do amor,
Por alguma ordem dos deuses
Você acabou por esquecer
Dos teu companheiro de abismo, certo?
Não há quem dele se lembre
Quando tudo é amor, festa e devoção.

Vá, enclausure-te na solidão,
Desde que não reclame
Quando não enxergar ninguém mais por perto
E nem sequer, numa manhã de domingo,
Encontrar no espelho assombra do teu próprio reflexo.

Assim você preferiu escolher o amor
- Como um núcleo que se fecha,
Ao invés duma essência que se expande -
Vá, que as andorinhas ainda se põem à seresta.
Podemos daqui ouvi-las, mesmo que a visão
Do cego de alma seja espantosa e dolorida,
Como os sonetos que consolam almas assim como a tua...
Almas ressequidas.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

O Nosso Incandescente Caminhar (Pedro Drumond)




O Nosso Incandescente Caminhar
(Pedro Drumond)

A vida é muito curta para se viver de ilusões.
Temos sim é que viver dos nossos sonhos
E fazer da nossa morte uma simples fantasia!

Pegue seu cunho de amor, seu cunho de dor,
Cate seu cunho de tristeza, seu cunho de alegria,
Inclua suas crenças e suas descrenças,
Porém não se esqueça
Das boas lembranças assim como das letargias,
Em seguida armazene tudo
Como o que será cremado
Para dissolver-se nas águas do mar.
A vida é um constante reinventar-se!

Caminhe unido às suas raízes,
Mas queira seguir o destino das estrelas.
Muitas vezes os nossos apegos
Não passam de meros sacos de areias
Que carregamos inutilmente sobre as costas,
Enquanto poderíamos ir além dos nossos limites.
Descerramos os tantos véus do desconhecido
De forma que se faça mais livre
Esse nosso incandescente caminhar.

Não se prenda muito à sua história,
Já que viemos ao mundo para nos diluirmos.
A vida é muito curta para ficarmos hipnotizados
Quando o medo e a insegurança,
Do alto de uma colina, se põem a cantar.

Eterno Mistério (Pedro Drumond)




Eterno Mistério (Pedro Drumond)
Os véus têm de cobrirem, mas jamais ocultarem o todo!
Os véus não podem transformar-se em muros,
Assim como os arvoredos não podem
Tornarem a floresta um itinerário intransitável.

Diga, meu amor, que eu lhe escuto.
Não queres me ouvir? Sou mudo,
Mas não roubes de mim
Os segredos da tua alma.

Faça, meu amor, que eu não te impeço.
Queres testemunha? Aqui te espero,
Mas não hesites de me contar
Os teus tenebrosos crimes.

Veja, meu amor, que eu te ilumino.
Não queres que eu ofusque-te? Desapareço,
Mas não te cegues os sonhos da vida
Para as mágicas realidades que ofereço.

Sinta, meu amor, que eu te consinto.
Não queres meus efeitos colaterais? Previno-te,
Mas não deixes jamais de me experimentar.

Seja, meu amor, esse eterno mistério,
Contudo que descubras o sentido do meu amor.
Não ignores como é doce e inútil
Fazer da nossa vida uma pretexto para amar.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Amores & Seus Nadas (Pedro Drumond)





Amores & Seus Nadas
(Pedro Drumond)
Amores começam do nada
Porque terminam do nada.
Engrandecem-se com nada
Porque diminuem-se com nada.

O amor nada contra e a favor das correntezas da alma
E quem ali se afoga sou sempre eu, ser de vida rasa.
O amor dos seres da mesma espécie
Na medida em que o tempo vai passando
Os une na medida em que mais se repelem.
Nunca fui gaiola, me fiz porto-seguro,
Mas se me perguntarem em quem me apoio
Não terei qualquer embasamento profundo.

Meus sabiás, meus navios, sempre estão de saída.
E eu fico aqui, de coração partido.
Eu tenho medo da vida toda vez vez que acordo
E termino o dia cada vez mais encantado por ela!
Com a esperança de ter mais, de ser melhor,
Isento-me da relevância de ser ou não ser o distinto.

Amores me deixam sem nada,
Amores me dão nada,
Amores nada me prometem.
Por que amas, coração? - minha mente indaga.
Sutilmente o mestre responde:
 Ora, pois se amo, só posso amar por nada!

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

A Beleza das Trevas (Pedro Drumond)




A Beleza das Trevas
(Pedro Drumond)
Existe algo mais divino que a beleza das trevas?
A partir de hoje, acreditando eu
Que era plenamente escutado pela vida,
Fui um apelo, fui uma sinceridade,
Fui mais que uma verdade
E menos que uma mentira.
No entanto, sem mais novidades!" - nada me respondeu.
Ninguém me respondeu! Nada aconteceu!
Nada desapareceu?

Continuei ali, qual infante,
A atazanar os ouvidos sensíveis
Deste silêncio do qual a vida é feita,
Querendo ser mais do que um ser humano.
Desmerecendo a guerra, mas não os aliados.
Da vida partindo sem alegrias nem tristezas,
Apenas sabendo o preço do pesadelo
De ter evocado os sonhos do meu íntimo.
É tenebroso ser mais realista e nítido
Aquilo que os homens maquiam como fracasso.

O que o destino me reserva?
Ora, não me atordoe com perguntas tão estapafúrdias,
Acaso não vê que estou muito ocupado?
(Ocupado com o quê? O que há de tão importante para mim?)

Não, se quiser não precise ficar ao meu lado
Estou olhando no espelho, estou olhando a paisagem.
Estou olhando o segredo, estou olhando a miragem.
Estou olhando apenas amim mesmo
E o nada que levo desta grande viagem.
O que o destino me reserva?
Deveras algo mais divino que a beleza das trevas.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Sina (Pedro Drumond)




Sina (Pedro Drumond)

Vilão, herói.
Coração que corrói.
Sou mais do que os dois,
Sou a pedra que amolece
E a ferida que não dói.
Minha sujeira, minha cartasse,
São a certeza de toda corrupção
Justa e injusta, digna e indigna,
Que em sua fenícia me invade sem pudor.

Eu sou um traidor.
Apunhalei as costas de um amor
E como tudo estava escuro, ela nada ciente,
Acabou sem saber quem foi (é, mas fui eu...).
Eu, quem a apunhalei por trás
Sou o mesmo quem lhe consola pela frente,
No entanto quando ofereço o meu apoio
Eu sou verdadeiramente um, distinto do outro,
Eu quem lhe roubei paz, sou o mesmo
Que lhe aconselha a melhor proteger-se,
A arquitetar de maneira definitiva os muros
Que devem impedir a mínima entrada na sua vida
De gente que seja igual a da minha espécie.

Conspurcado, fui ladrão
Porque a vida tinha me impedido
Do direito de ganhar.
Apaixonado, errei ansiando mais
Pelo gosto do perdão
Que somente eu poderia me dar.

Assassino a alma de uma pessoa
E no mesmo ínterim lhe devolvo a existência.
Ela não há de perceber, pois permanecerá
Nem salva, nem afogada, apenas aplacada,
boiando nas águas sujas do rancor.

Assim é o ser humano, um viciado em dor
Que vive a respirar o ar da sua insistência.
Se causar lágrimas nos outros é tão fácil,
Difícil é promover os sorrisos que labutamos
Sem sequer serem percebidos.

Na vida interna, matei a minha mãe de raiz
Aquela quem me deu o prato de comida, fina educação,
E ao mesmo tempo, obnubilada de ilusão,
Amordaçou-me, acorrentou-me,
Tirando-me ora a liberdade, ora a vontade
De ir  apaixonadamente ao encontro da vida.
Foi ela o amor quem machuquei
Sendo covarde demais para assinar
A obra da minha própria autoria.

Ao mesmo tempo recolhi nos caminhos por onde passei
A culpa dos outros, a culpa dela e a culpa minha.
Engoli tudo aquilo como se fosse uma indigestão só,
Preparada especialmente para mim.
Por ela eu daria a alma, na verdade lhe devo a vida,
Mas ainda que eu machuque e cure ao mesmo tempo,
A incoerência do meu ser, condenado a humano, é de dar dó!
A essência de viver e morrer, em nome de quem amo,
É o remo mais confiável que tenho - o sentimento -
Por isso tenho essa sina de ser só.

Posso até ser um hipócrita,
Um amaldiçoado, um traidor,
Mas até agora estando ao seu lado
Sou mais do que nunca fiel ao nosso compromisso,
Fiel a nossa missão, fiel ao nosso amor.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Os Deuses, Os Mortais & Eu (Pedro Drumond)





Os Deuses, Os Mortais & Eu
(Pedro Drumond)

Céus! O arrepio que percorre meu corpo
É um choque das mais elevadas voltagens
Que chega a desvirginar a minha alma!

Eu e o meu extremo excesso de amor
Não nos contemos, nossa represa se rompe!
Até então invado terras distantes,
Percorro cavernas misteriosas,
Sou uma avalanche arrasadora
E mesmo tão imbuído da delicadeza
Daqueles que criaram um manancial de amor inabitável
Dentro de si mesmos.
Desço do meu templo divino e sigo destino
Rumo as esferas rasas dos homens.

Chegando lá me deito em suas camas,
Fazemos viagens dionisíacas no carro, noites afora...
Nos embriagamos de orgasmos tão poéticos quanto físicos.
Quando as matas são o nosso palco de paixão
E o reinado do luar, com suas inúmeras estrelas, são nossa platéia,
Percorro todos homens da côrte, não hesito em me disfarçar de plebéia.

O importante é que o deus do amor,
Exilado do seu reino mágico,
Tenha passado pelos corpos, pelas almas,
Pelos gozos de todos os tipos.

O importe é o deus do amor esquecer que um dia amou
E lembrar que para sempre não foi amado.
O deus do amor passa por todos
Sem que ninguém tenha ficado ao seu lado,
Pois é essa a sina de quem escolheu
Arriscar tudo sem garantias para viver.

De duas uma: Ou se torna consciente da essência desse teor,
Impedido, todavia, de aplicá-la em qualquer realista experiência,
Ou se vive as mais raras excelências do sentimento
Que invejam os solitários, os rejeitados, os limitados a sonhadores,
Mas jamais venha a se dar conta da sua distinta riqueza.
Se vive como um mendigo a vida inteira,
Cujo interior do papelão sobre o qual dormia
Ocultava um diamante valioso - que se outrora descoberto
Teria tornado tudo bem diferente...

Se vive a verdade, mas não se saberá o que é o amor.
Assim, de quaisquer ambas as partes,
Haverá profunda incompletude.
Os amantes, invejados pelos deuses,
Voltam ao seio de seus lares, insatisfeitos,
E os deuses, amaldiçoados por serem divindades
E adorados equivocadamente, se recolhem em seus palácios.
Dada hora da noite, em meio ao ouro excelso do qual são banhados,
Sentem os deuses o peso de sua profunda pobreza de espírito.

Mais um dia se passa,
Os mortais vivem o amor infinito, sem o saberem.
Os deuses vivem a eternidade, sem de amor morrerem.
E entre um e outro, padeço do pior mal
Não sou humano, tampouco sou deus - sou mero animal!

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A Tempestade & O Furacão (Pedro Drumond)






A Tempestade & O Furacão
(Pedro Drumond)

O amor é mais importante
Que a vida e a morte.
O amor é o único capaz de nos salvar
Da profanação disseminada
Que nos causa os causos do mundo.
Por algo além do amor
É digno isentar-se da vida.

Por algo aquém do amor
É vergonhoso permanecer nela.
A vida nos educa a sermos duros
Que nem as pedras
Quando nos pusermos diante
De certas lágrimas que desfilam
Na cachoeira de nossas almas.
Ah, a tempestade... Ah, o furacão!
Eu era capaz de esmagar uma alma
Com os punhos fortemente cerrados,
Mas como bem souberam, abri minhas mãos
E lá se foi a minha incólume vida,
Toda embriagada da realidade nua e crua.
Conheci bem quem vivia por ilusão.
Eu já não era menos do que uma explosão
E morri sem pudor algum pela minha verdade.

Digo ao meu herói
Que fui sua companheira de guerra.
Mesmo quando ele se achava mais alucinado
Eu estava com ele tanto quanto, ele se via ao meu lado.
Ainda acreditas no desespero, meu amado?
Eu tive aversão a tudo e tu foste o único monstro
Do qual não senti um pingo de medo.

Protegida fui por tudo o que deixei,
Embora a única coisa que ficou comigo
Foi o amante zeloso, foi o ombro amigo
Foi o salto do desgosto, foi o amor infinito.

Havia um pôr-do-sol
Pairando sobre as nuanças do nosso céu,
Momentos antes de irmos para um festim.
Há de se lembrar do que falo
Por nós passavam crianças peraltas
E eu lamentava a inocência perdida.
Entre nós havia o mar e tu souberas
Me presentear com o reflexo de quem,
Mais do que todos, encontrou seu destino comigo.

Alianças jamais tiveram importância, creia.
O que digladiava meu ser
Era não afirmar-me com a fidelidade
Que dedicava a rosa ao espinho.
Ninguém deveria trocar-me de lugar,
Pois a única coisa que eu jamais viria admitir
Era que não haver um mundo para nós
Como não me houve quando desejei um trágico fim.

Chamem de trágico aquilo que chamo de coragem.
O amor é a única poesia que jamais será escrita
Assim como o meu perfume está incutido naquele chale,
Segredei aquilo que de ninguém mais ouviria - eu te amo! -
Levei tudo comigo, mas deixei-me contigo.

Pertinente em todos os sentidos
Tu te alimentas da força,
Pois não certamente fraqueza o que ofereces.
Entrementes, em nenhum princípio
Nada mais me imbui, esteja certo.
Poderia eu vagar em diversas trevas,
Mas é no teu coração, meu amado, ser quisto,
As trevas que sempre tive a pretensão de vagar.

Certos Dias do Meu Arrebol (Pedro Drumond)






Certos Dias do Meu Arrebol
(Pedro Drumond)

Meus únicos sonhos verdadeiros
São aqueles que ainda não sonhei.
Quaisquer que sejam os meus devaneios
Defendo que o impossível não pode existir
Por tudo aquilo que já passei.

Eu sei que estou cavando a minha própria cova.
Estou parado no tempo e a vida tem passado por mim
Como um trem-bala feroz:
Incontrolável, imperceptível e sem freios.

Agora, uma vez sem saber
Como conduzir o meu próprio destino,
Surpreendo-me com o todo inevitável.
Deslumbro-me com tudo o que é distinto
Com tudo que me vejo absorvido
Em certos dias do meu arrebol.

Se eu pudesse descrever a minha vida
Diria que é uma página em branco, vazia.
Certas vezes o que nela prescrevo
Não se trata nem de minha própria autoria.
Outras vezes quando analiso certas pistas
Nem mesmo sou capaz de entender o que ali concebo,
Mas sempre que essa página em branco
É vista por mim, sem desespero e apreensão,
Belas histórias são intensamente vividas
Pela morte trágica do dilúvio,
Pelo sonho intenso de um futuro
Pelo qual até hoje sobrevive o meu coração.

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Tempo da Liberdade (Pedro Drumond)




Tempo da Liberdade
(Pedro Drumond)

Meia-noite...
Alguém recebe a benção.
Outro recebe o açoite.
Meia-noite...
Tempo perigoso.
Tempo glorioso.
Tempo em que máscaras caem.
Tempo em que disfarces se erguem
Como os pilares soberbos do Templo de Delfos.

Será que os adultos de agora
Tão crianças em suas maneiras
Conseguiram entender por quê o lobo-mau
Urge especialmente a meia-noite, à luz da lua cheia?

Meia-noite...
A fina dama, sociality, sai de casa nas pontas do pé
E vai para as calçadas das zonas mais baixas,
Famosas às margens da sociedade,
Para refazer os homens que estão em busca
Dos prazeres mais devassos.

Meia-noite...
O senhor moralista, o grande chefe da família, o fanático,
Portando bigodes grossos, olhar duro, cenho fechado,
Que vive sistematicamente o rigor dos ogros
E a todos amedronta até que se sinta respeitado,
Está agora, clandestino, nos braços de alguém.
Só não sei se os braços que lhe percorrem todo o corpo
- dos cabelos ao falo -
São os braços de uma puta ou um viado
(talvez sejam os dois!).

Meia-noite...
Alguém é assassinado
Ao mesmo tempo que no sul da cidade
Uma mãe acaba de dar à luz o seu bebê.
Um novo ser que estréia no palco tragicômico do mundo
Lhe retribui a felicidade de ter gerado uma vida
(Privilégio esse, cuja mulher, fatalmente mortal, mais anseia).

Meia-noite...
Enquanto os boêmios estão rindo no bar,
Enquanto alguém se farta d'um apetitoso banquete,
Alguém está no quarto a chorar.
Um mendigo tem fome de vida
Assim como da morte tem sede.

Meia-noite...
Tempo em que tantos fatos e ocorridos se reúnem
Coisa que, sobretudo, jamais caberia numa vida inteira!

Meia noite...
Minha fera desperta.
Ganho outros contornos.
Minha paixão aumenta.
Uma força estranha me toma o corpo.
Proponho-me a ir ao mais tenebroso umbral
Desde que os meus desejos da carne sejam satisfeitos.
Ao mesmo tempo posso subir aos céus, tocar as estrelas
E me encontrar jubiloso no mais elevado pico das purezas
Com aquela rarefação própria dos amores sublimes.

Meia-noite...
É o tempo em que se abre a caixa de Pandora.
Nesse ínterim o portal do céu e do inferno
Se transformam e acasalam-se num só.
Sou imbuído, portanto, de atravessá-lo,
Caso contrário me restará dormir
Correndo o risco de jamais novamente despertar.
Há tempo de em protesto às regras,
Ter tido um verdadeiro alívio.

Meia-noite... Tempo da liberdade
Dos prisioneiros noctívagos.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Alma Me Sou (Pedro Drumond)





Alma Me Sou
(Pedro Drumond)

Para uns o importante é descobrir a felicidade.
Para mim o importante já é descobrir
Novas artes e insígnias humanas
Que nos transmitam tais essências
Repletas do belo, do transcendente,
Banhadas do divido e do atemporal.

Talvez os segredos do amor
Possuam a natureza dos mesmos mistérios da arte:
Quanto mais se pensa que já chegou-se ao fundo,
Mais ainda se engrandece o risco de aprofundar-se
Nas camadas do silente e oculto
De modo deveras mais surpreendente.

Melancólico inquieto...
Morador da escuridão...
A pouca luz das velas no candelabro
É o suficiente para iluminar a minha dor.
Desta lâmina que trago em mãos
Tudo o que preciso é do seu brilho cego.
Sou um abismo, uma escuridão parindo luzes.
Bem aqui, no pescoço, onde pulsa a veia
Que leva o sangue aos sonhos e ao coração,
Bem aqui então terei o corte mais profundo
Para oferecer, como num rito sacro, o meu prazer à morte!

Alma me sou, me desfaço em sombras e luz.
Alma me sou, e termino meus delírios
Em meio as névoas de nebulosas sagradas.
Alma me sou, encolho-me num caldeirão,
Minha poção é um veneno tão antigo como a vida.
Beba de mim, meu amado,
Beba assim, minha querido...
Então entenderás os sonhos que em mim habitam.

A luz que ilumina o dia não penetra nos meus abissais.
Há de se ter luz própria para viver nesses fossos.
Saúdo, portanto, os deuses que moram em mim,
Mais do que eu na moradia deles.
Absorto, me leio ao invés de entender-me.
Crio-me n'outra versão de mim mesmo.
Inúmeras são as versões existem - eis-me incógnita -
Esboços preciosos, esses sim vão ao lixo.

Distraído sigo, pois o que é criado por mim
É mais importante do que o deus que me criou.
Passeio como um personagem que pula
De vidas e vidas nas páginas de um livro.
O único traquejo do destino é reservar-me o ponto final.

Sirvam-se e ceiem-se todos!
Esse vinho é o sangue dos deuses
Que ofereço-lhes agora,
Não pra tornar-me igual a eles,
Mas pra torná-los inviolavelmente iguais a mim!

Se a vida é fogo, então que me queime!
Se a morte é água, então que afogue-me!
Eu sou mais do que concebo. Eu sou a mistura hermética
De todos os elementos do caos primordial!

Eu quem risco os traços do destino
Nas linhas da palma de minha mão.
O espelho reflete a si mesmo,
Mas que prisma poderia refletir meu sonhos?
Apenas a escuridão na qual se afoga.
Ao cerrar os olhos o desconhecido é o que nos resta.

Quando quisermos decifrar o que seja a verdade
Tiremos nossas máscaras com a coragem
Que só é dedicada aos mortais.
Aqui se encontra uma cabeça aos meus pés
Em homenagem a todas as Salomés.
Beijo a escultura das minhas falhas de amor.

Eu que simplesmente matei
Toda a minha lasca mentalidade,
Alma me sou!

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

A Temperança (Pedro Drumond)






A Temperança
(Pedro Drumond)

Tenho pensado seriamente na força descomunal
Que me imbuí a reclinar-me perante as minhas vilanias.
Quero deixar de lado, por um momento,
O meu auto-juízo, o meu desgosto próprio,
O meu auto-julgamento, meus sonhos risórios.
Quero me anular do núcleo e dos prismas
Para tentar assimilar por quê o ser humano
Há de decair em si mesmo com muito pouco esforço
E ao mesmo passo há de travar batalhas descomunais
Em vista das alturas que pretende alcançar.

Quanto mais elevada é a virtuosidade de um homem
Mais elevada é igualmente sua tenebrosa maldade?
Leva-se bastante tempo para querermos encarar a verdade,
Mas isso se justifica, não pelo nosso medo do que ela seja,
E sim pelo nosso pavor de ficarmos cegos
Depois de vislumbrarmos o excesso de luz
Que nos cega tanto quanto a escuridão das trevas.

Meu sono é mais profundo e pesado
Que o ninar das heroínas medievais.
Sim, fujo com sagacidade da realidade,
Parece mais que estou vivendo
Com a meta de cavar a minha própria cova
E o bom disso é que não me sinto nada.
Não me sinto bem, tampouco me sinto mal.

Esse é o meu tempo.
As horas do relógio correm ligeiras,
Mas perpassam-se em algumas casas
De modo mais lento que em outras.
Assim como não vou para frente,
`Para trás não posso ficar.
Eu não pertenço a esse mundo
E é esse mundo meu único habitat.

A andrógina Temperança, arcano de Tarot,
Anjo feminino que derrama o conteúdo de um vaso em outro,
Elaborando cuidadosamente a transmutação das polaridades,
Vem de paragens distantes, das bodas de Canaã,
Onde a mulher – por ordem de Jesus – vira a água
Que logo vai se transformar em vinho.
Horácio nos diz: “O cântaro reterá por longo tempo
O perfume que o encheu pela primeira vez”
Dentro de mim a sede dos rios
Se confunde com a secura dos oceanos.
Estou em profundo desiquilíbrio,
Mas nunca fui tão melhor, propriamente vivo,
Como agora, se eu for pensar em todos os meus breves anos.

Pelo que percebi a vida não é linear.
Ela não puxa simplesmente os tapetes
Daqueles que querem atravessá-la inviolavelmente
Com maior maestria. Ardilosa,
Ela abre os abismos sob nossos pés
Caso seja de nossa ilusão
A vontade de alcançar o nosso destino
Sem desorientações, sem desvios,
Sem perder-se, sem cometer equívocos.

A vida não compactua com os bons samaritanos.
Por estranha paixão ela sempre abarca aqueles
Que a qualquer hora derrapam-na com todo furor.
Imáculo, tudo é mais nebuloso para mim.
Quando límpido, sou alvo em potencial para a dor.

Por isso nada mais posso esperar de mim.
Ao mesmo tempo que transbordo
Amor, pureza, inocência, luz e carinho
Em orações notívagas para um ser desprezível,
N'outro dia cometo um crime, traio corrompido
Alguém que menos mereça as minhas facadas pelas costas.
Eu sou a justiça, eu sou o criminoso.
A minha fatalidade é um paradoxo!

Se supostamente a consciência
É apenas a gaveta que retém
As nossas recordações de nós mesmos,
Nada haverá ali o que me deslumbre
Ou que me desencante.
Nada haverá ali o que me ponha a meu favor
Ou que me ponha contra pelo que sou.
Nada haverá ali, já que sou capaz de tudo.
Tudo ali haverá, já que sempre fui incapaz de nada.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Diversos "Eus" (Pedro Drumond)




Diversos "Eus"
(Pedro Drumond)

Amor dos horizontes...
Tão próximos e ao mesmo tempo tão distantes.
O romantismo dos humanos intensamente reais
É tido como loucura pelo resto de projetos banais.
Não somos entendidos, mas preferimos sermos ignorados
Por tudo aquilo que verdadeira e forjadamente somos.

Não adianta falar do vazio, não adianta falar do nada.
Não adianta falar da náusea, não adianta falar da distinção.
Seremos sempre atacados, nossos tapetes serão puxados,
Vômitos de inveja, ódio e rancor,
Jorrarão como gordura de carneiro sobre nossos corpos,
Pois para os cegos da alma a luz dos sentimentos é uma aberração.

A cada dia que se passa,
Noto que minha alma não possui nada de novo.
Outros, assim como eu, ou até mais do que eu,
Aqui estiveram, aqui estão
E aqui neste solo muitos haverão de estar.
Muda-se os tempos, os personagens,
No entanto a mensagem e a falta de contexto
Permanecem exatamente os mesmos.
Um eco que urge como explanação
Lá das cavernas do homem primata
Pode ser facilmente traduzido para o homem atual
Que passa pelo mesmo mundo,
Cujos os seres de igual escalão
São simpáticos às torrentes do atemporal.

A essência que caracteriza nossas almas
Marcam-nos como espécies de órbitas confusas.
Por conta disso cada dia que passa
Aproximo-me de revelações mais nítidas.
Diversos são os "Eus" do meu único reflexo.

Você já sentiu-se um grande desperdício?
Ás vezes permito-me sentir-me assim:
Um erro da natureza, um grande equívoco.
Um genuíno potencial sem espaço
Neste mundo falso e hipócrita.

Sou uma máscara. Minha vida, o rosto menos ideal.
Não sei porque tenho que vislumbrar
Com os olhos secos, baixos e avermelhados,
Esse rosto tão assombroso e desfigurado
Que estampa-se por todos os lados
- o rosto cruel e hipnotizante da vida.
Sou um leão criado em meio aos ratos.
Há algo, portanto, que sem querer se aflora,
Algo que deve urgentemente se impor.

Para quê ser respeitado?
Para quê louvar uma moral?
Eu desmereço qualquer princípio.
Eu sou muito mais do que a minha dor.

Não posso ter muitas certezas sobre quem sou,
Pois quem busca entender a vida
Ainda está muito adoentado dela.
Fiz uma lavagem existencial.
O que tenho não é desinteresse,
O que possuo é apenas uma mácula,
Por isso busco sempre viver em confronto
Ora com os virtuados, ora com os paspalhos
(na realidade, eles não são muito diferentes).

Nessa vida eu só posso ser
Melhor do que eu e pior do que eu.
Comparações alheias são os atalhos mais perdidos.
Só posso ser mais do que sou e menos do que fui.
Só posso ser pó do meu ser só. Nada mais e só isso...

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Provocação (Pedro Drumond)






Provocação
(Pedro Drumond)

Deuses jamais serão entendidos pelos humanos
Da mesma forma, os humanos jamais serão entendidos pelos deuses.
O que melhor ser - deus ou humano? Ah, impossível dizer!
Podem se tratar de uma mesma coisa,
Ambos com o seu distinto valor.

A família, por exemplo,
É a única platéia que entra e sai da sua vida
Sem jamais entender o espetáculo.
Respectivamente, porém, sempre haverá
Um choque, um confronto entre aqueles que desceram
Até o Hades da própria alma e lá encontraram
O seu nefasto Olímpio, sem desejar um lar.
Logo, é mais fácil questionar alguém,
Cujo objetivo próprio de vida é o amor
Do que, em comparação, poder melhor amar.

Somente aqueles que transcenderam a dependência de viver,
Assim como a importância de suas auto-imagens,
Aqueles que de fato se expandiram ao grande Nada,
Nesse espasmo, que ao Todo contém,
São quem podem ir mais além... Mais além...
Mas vejamos bem: Talvez nunca mais voltem a serem vistos!

Em vista de terem almas abertas às incoerências da vida,
Tal qual a certeza da morte, precisamos nos dissipar
No compasso em que vamos nos gladiando uns com os outros,
Pois totalmente constrangedor é não termos rumo.

Como virou moda acreditar em sua plenitude,
O tempo passa. Passa tudo!
Minhas esperanças vão se esvaindo
Pela triste fumaça do cigarro.
Portanto quero mais é viver
Para ser uma provocação, um grande incômodo.
Viver a ponto de ser um tolo
Incapaz de ser pego desprevenido.

Que eu não venha mudar de atitude
E que ninguém, a não ser eu mesmo,
Possa ter-me por transformado.
É muito simples viver com silêncio dos desertos,
Com o eco das cavernas. O que nos desafia mesmo
É darmo-nos conta dos nossos passos incertos,
Uma vez que o grande absurdo da vida
Convém às nossas explicações
Serem dirigidas aos anjos das trevas.

domingo, 2 de fevereiro de 2014

O Amor das Filhas de Medeia (Pedro Drumond)




O Amor das Filhas de Medeia
(Pedro Drumond)

Ai de mim! Ai de mim!
Pela primeira vez o amor, tão puro e ingenuo,
Revelou-me a química da qual é feito - puro veneno!
O amor subitamente virou-se do avesso
E mostrou-me sem cerimônias a sua real roupagem.
Hoje posso entender com toda empatia
Quem é a besta truculenta barbaramente digladiada,
O que só as filhas de Medeia, como eu,
Podem sentir de verdade com a alma em brasas.

Em nossos corações não há mais espaço para a tristeza.
A tristeza é uma emoção retrógrada e muito dissimulada
Que se esvai em águas fugidias, turvas e cada vez mais negras.
As águas dos nossos corações são totalmente o contrário:
São rubras, são feitas do sangue que não se estanca.
São o rastro da nossa morte, são feridas completamente vivas.
Nossas lágrimas são mais condensadas do que a esperança.

Medeia, a bárbara, não fora de fato a assassina de seus filhos.
Matar seus filhos era um sacrifício divino
Que precisava ser oferecido à deusa Hera.
Matar suas crias fazia parte de todo o princípio,
Pois apenas de tal forma extirparia-se com toda a continuidade
Oriunda daquele amor com Jasão, de sentimentos tão corrompidos.

Para nossa Medeia era preciso matá-los,
Na sua tênue simbologia, matar era preciso!
Pois hoje assassino a minha verdade e sua essência,
Assim como Medeia assassinou os seus filhos.
Não quero mais saber disso. Não, não quero!
Que eu me dilacere e me queime
Nas chamas de todo o Hades,
Contanto que eu jamais torne a acreditar
Nos sonhos que recobrem o Olímpio do amor,
Em vista que seus linhos são os mais danosos
Para serem revestidos em nossas almas.
Recordai o presente dado por Medeia
À Creúsa, a filha do rei Creonte?

Sei que sempre combati a desilusão e frieza alheia.
Que ambas jamais criassem fortalezas nos corações,
Tornando-os generalizadores infantis
Da bondade ou maldade humana.
Mas quer saber de uma coisa? Para mim basta...
Agora chega... Chega!

A partir de então sinto uma extrema aversão
Pelos meus consentimentos de amor.
Em vista de que ele é totalmente injusto e incoerente,
Fico a imaginar-me dedicando a minha essência
Para quem dela fosse real merecedor.
Temo, completamente, certo dia deparar-me
Com alguém igualmente digno de ser amado
E não ter o mesmo que até então eu tinha para oferecer.
Apavora-me não ser capaz de fazê-lo agraciado,
Já que o amor de uma deusa como eu foi desperdiçado
Pela insensibilidade de um mero, ínfimo e reles humano.
Ai de mim, caso isso aconteça serei pior do que já sou!

Raiva extrema, ácido de ódio.
Ódio, ódio! É disso que se alimenta o meu segredo.
Eu, filha de Medeia, descobri que o amor
Não serve para destruir o outro na nossa vida.
Talvez o certo é que ele seja necessário
Apenas para destruir-nos perante nós mesmos.

Se um dia eu encontrar o meu Jasão pela estrada
Farei o mesmo que cometi da última vez
Quando ocorreu-me este feito ocasional,
Porém desta vez não serei defendida pela minha natureza.
Não será por um simples impulso, à primeira vista incompreensível,
Que eu vou fugir... É isso, isso! Vou fugir,
É meu direito seguir o meu caminho.
É meu direito minha vingança cumprir!

Não hei de ficar com o coração dolorido.
Ah, desta vez não! Hei de pagar mais que a moeda,
Hei de roubar mais que o velocino de ouro.
Algo de valor muito superior
Ao que simplesmente me fora oferecido - a dor rejeitada.
Vislumbrar e não responder.
Não responder e só apenas vislumbrar.
Tudo responder e nada vislumbrar...
Ah... Ai de mim!

Eu sempre disse que a arte não fora feia
Para os aplausos, para as vaias,
Pois o verdadeiro espectador
É um recipiente de silêncio e mistério.
Sem esboçar qualquer decifrável reação
A arte atinge mais esse tipo de indivíduo
Do que a qualquer outro. Mas eu?

Eu não sou a arte, eu não tenho a sua pureza.
Apenas sou um aspirante da sua transcendência,
E mesmo assim não chego muito longe com isso.
Entre a arte e eu existem grandes diferenças,
Portanto renego um espectador de mim mesmo
Que haja com as mesmas condições da própria fé que proclamo.

Sim, quero matar, assassinar o meu filhote
Ora carente, ora demente. Ou melhor - que ele cresça vigoroso
E vire uma besta arredia até que se embosque
Num buraco qualquer da implacável tragédia que é a vida.
Morra de fome, por querer alimentar um indigesto!
Morra de fome, por querer endeusar um ser trépido!
Morra de fome, por se doar em demasia
Sendo incapaz de abençoar a si mesmo.

Morra de fome, amor infeliz, porque por outros
Sua preferência é a de protegê-los sob toda condição,
Enquanto que eu sou deixado a míngua,
Queimando por mim mesmo, de nada servindo
O que trago no coração - uma quimera. Uma quimera infeliz.

O amor das filhas. Das filhas de Medéia.
Ai de mim! Ai de mim!