quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

A Temperança (Pedro Drumond)






A Temperança
(Pedro Drumond)

Tenho pensado seriamente na força descomunal
Que me imbuí a reclinar-me perante as minhas vilanias.
Quero deixar de lado, por um momento,
O meu auto-juízo, o meu desgosto próprio,
O meu auto-julgamento, meus sonhos risórios.
Quero me anular do núcleo e dos prismas
Para tentar assimilar por quê o ser humano
Há de decair em si mesmo com muito pouco esforço
E ao mesmo passo há de travar batalhas descomunais
Em vista das alturas que pretende alcançar.

Quanto mais elevada é a virtuosidade de um homem
Mais elevada é igualmente sua tenebrosa maldade?
Leva-se bastante tempo para querermos encarar a verdade,
Mas isso se justifica, não pelo nosso medo do que ela seja,
E sim pelo nosso pavor de ficarmos cegos
Depois de vislumbrarmos o excesso de luz
Que nos cega tanto quanto a escuridão das trevas.

Meu sono é mais profundo e pesado
Que o ninar das heroínas medievais.
Sim, fujo com sagacidade da realidade,
Parece mais que estou vivendo
Com a meta de cavar a minha própria cova
E o bom disso é que não me sinto nada.
Não me sinto bem, tampouco me sinto mal.

Esse é o meu tempo.
As horas do relógio correm ligeiras,
Mas perpassam-se em algumas casas
De modo mais lento que em outras.
Assim como não vou para frente,
`Para trás não posso ficar.
Eu não pertenço a esse mundo
E é esse mundo meu único habitat.

A andrógina Temperança, arcano de Tarot,
Anjo feminino que derrama o conteúdo de um vaso em outro,
Elaborando cuidadosamente a transmutação das polaridades,
Vem de paragens distantes, das bodas de Canaã,
Onde a mulher – por ordem de Jesus – vira a água
Que logo vai se transformar em vinho.
Horácio nos diz: “O cântaro reterá por longo tempo
O perfume que o encheu pela primeira vez”
Dentro de mim a sede dos rios
Se confunde com a secura dos oceanos.
Estou em profundo desiquilíbrio,
Mas nunca fui tão melhor, propriamente vivo,
Como agora, se eu for pensar em todos os meus breves anos.

Pelo que percebi a vida não é linear.
Ela não puxa simplesmente os tapetes
Daqueles que querem atravessá-la inviolavelmente
Com maior maestria. Ardilosa,
Ela abre os abismos sob nossos pés
Caso seja de nossa ilusão
A vontade de alcançar o nosso destino
Sem desorientações, sem desvios,
Sem perder-se, sem cometer equívocos.

A vida não compactua com os bons samaritanos.
Por estranha paixão ela sempre abarca aqueles
Que a qualquer hora derrapam-na com todo furor.
Imáculo, tudo é mais nebuloso para mim.
Quando límpido, sou alvo em potencial para a dor.

Por isso nada mais posso esperar de mim.
Ao mesmo tempo que transbordo
Amor, pureza, inocência, luz e carinho
Em orações notívagas para um ser desprezível,
N'outro dia cometo um crime, traio corrompido
Alguém que menos mereça as minhas facadas pelas costas.
Eu sou a justiça, eu sou o criminoso.
A minha fatalidade é um paradoxo!

Se supostamente a consciência
É apenas a gaveta que retém
As nossas recordações de nós mesmos,
Nada haverá ali o que me deslumbre
Ou que me desencante.
Nada haverá ali o que me ponha a meu favor
Ou que me ponha contra pelo que sou.
Nada haverá ali, já que sou capaz de tudo.
Tudo ali haverá, já que sempre fui incapaz de nada.

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