domingo, 2 de fevereiro de 2014

O Amor das Filhas de Medeia (Pedro Drumond)




O Amor das Filhas de Medeia
(Pedro Drumond)

Ai de mim! Ai de mim!
Pela primeira vez o amor, tão puro e ingenuo,
Revelou-me a química da qual é feito - puro veneno!
O amor subitamente virou-se do avesso
E mostrou-me sem cerimônias a sua real roupagem.
Hoje posso entender com toda empatia
Quem é a besta truculenta barbaramente digladiada,
O que só as filhas de Medeia, como eu,
Podem sentir de verdade com a alma em brasas.

Em nossos corações não há mais espaço para a tristeza.
A tristeza é uma emoção retrógrada e muito dissimulada
Que se esvai em águas fugidias, turvas e cada vez mais negras.
As águas dos nossos corações são totalmente o contrário:
São rubras, são feitas do sangue que não se estanca.
São o rastro da nossa morte, são feridas completamente vivas.
Nossas lágrimas são mais condensadas do que a esperança.

Medeia, a bárbara, não fora de fato a assassina de seus filhos.
Matar seus filhos era um sacrifício divino
Que precisava ser oferecido à deusa Hera.
Matar suas crias fazia parte de todo o princípio,
Pois apenas de tal forma extirparia-se com toda a continuidade
Oriunda daquele amor com Jasão, de sentimentos tão corrompidos.

Para nossa Medeia era preciso matá-los,
Na sua tênue simbologia, matar era preciso!
Pois hoje assassino a minha verdade e sua essência,
Assim como Medeia assassinou os seus filhos.
Não quero mais saber disso. Não, não quero!
Que eu me dilacere e me queime
Nas chamas de todo o Hades,
Contanto que eu jamais torne a acreditar
Nos sonhos que recobrem o Olímpio do amor,
Em vista que seus linhos são os mais danosos
Para serem revestidos em nossas almas.
Recordai o presente dado por Medeia
À Creúsa, a filha do rei Creonte?

Sei que sempre combati a desilusão e frieza alheia.
Que ambas jamais criassem fortalezas nos corações,
Tornando-os generalizadores infantis
Da bondade ou maldade humana.
Mas quer saber de uma coisa? Para mim basta...
Agora chega... Chega!

A partir de então sinto uma extrema aversão
Pelos meus consentimentos de amor.
Em vista de que ele é totalmente injusto e incoerente,
Fico a imaginar-me dedicando a minha essência
Para quem dela fosse real merecedor.
Temo, completamente, certo dia deparar-me
Com alguém igualmente digno de ser amado
E não ter o mesmo que até então eu tinha para oferecer.
Apavora-me não ser capaz de fazê-lo agraciado,
Já que o amor de uma deusa como eu foi desperdiçado
Pela insensibilidade de um mero, ínfimo e reles humano.
Ai de mim, caso isso aconteça serei pior do que já sou!

Raiva extrema, ácido de ódio.
Ódio, ódio! É disso que se alimenta o meu segredo.
Eu, filha de Medeia, descobri que o amor
Não serve para destruir o outro na nossa vida.
Talvez o certo é que ele seja necessário
Apenas para destruir-nos perante nós mesmos.

Se um dia eu encontrar o meu Jasão pela estrada
Farei o mesmo que cometi da última vez
Quando ocorreu-me este feito ocasional,
Porém desta vez não serei defendida pela minha natureza.
Não será por um simples impulso, à primeira vista incompreensível,
Que eu vou fugir... É isso, isso! Vou fugir,
É meu direito seguir o meu caminho.
É meu direito minha vingança cumprir!

Não hei de ficar com o coração dolorido.
Ah, desta vez não! Hei de pagar mais que a moeda,
Hei de roubar mais que o velocino de ouro.
Algo de valor muito superior
Ao que simplesmente me fora oferecido - a dor rejeitada.
Vislumbrar e não responder.
Não responder e só apenas vislumbrar.
Tudo responder e nada vislumbrar...
Ah... Ai de mim!

Eu sempre disse que a arte não fora feia
Para os aplausos, para as vaias,
Pois o verdadeiro espectador
É um recipiente de silêncio e mistério.
Sem esboçar qualquer decifrável reação
A arte atinge mais esse tipo de indivíduo
Do que a qualquer outro. Mas eu?

Eu não sou a arte, eu não tenho a sua pureza.
Apenas sou um aspirante da sua transcendência,
E mesmo assim não chego muito longe com isso.
Entre a arte e eu existem grandes diferenças,
Portanto renego um espectador de mim mesmo
Que haja com as mesmas condições da própria fé que proclamo.

Sim, quero matar, assassinar o meu filhote
Ora carente, ora demente. Ou melhor - que ele cresça vigoroso
E vire uma besta arredia até que se embosque
Num buraco qualquer da implacável tragédia que é a vida.
Morra de fome, por querer alimentar um indigesto!
Morra de fome, por querer endeusar um ser trépido!
Morra de fome, por se doar em demasia
Sendo incapaz de abençoar a si mesmo.

Morra de fome, amor infeliz, porque por outros
Sua preferência é a de protegê-los sob toda condição,
Enquanto que eu sou deixado a míngua,
Queimando por mim mesmo, de nada servindo
O que trago no coração - uma quimera. Uma quimera infeliz.

O amor das filhas. Das filhas de Medéia.
Ai de mim! Ai de mim!

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